terça-feira, 12 de abril de 2011

Não penses que estou triste nem que vou chorar

Jornal de WM
26/02/2006
Os carnavais que se foram

Ticiano Duarte, respeitável folião de velhos carnavais, escreveu uma bela crônica revivendo, na sua comovente memória, um tempo em que a folia mexia com este velho burgo à beira do rio plantada, velha Cidade do Natal, quando o seu povo saía às ruas em pândegas inesquecíveis. Havia o corso nas avenidas, o desfile dos blocos, o assalto às casas - muita bebida e muita comida -,   os bailes nos ditos clubes de elite e nos populares também.

Os bares se transformavam em quartéis-generais da alegria incontida, calçadas largas para a irreverência e o humor de sua gente, passarela dos “sujos”, dos blocos improvisados, dos foliões solitários, de mascarados e mascaradas jamais identificáveis. 

“Carnavais e Carnavalescos” é o título da crônica que Ticiano publicou nesta Tribuna do Norte de terça-feira. Cita nomes de grandes foliões, entre eles Djalma Maranhão, que depois foi o prefeito da Cidade  e continuou folião, agitador das festas que alcançavam os  subúrbios distantes, hospitaleiros quintais sombreados por mangueiras centenárias. Lembra de reis-momos famosos como o Luizinho Doublecheque, orador sem igual nesta terra de Poti mais bela.

Zé Areia é outra figura maior no traço das lembranças do cronista. Recorda Ticiano dos grandes bailes do Aero Clube, do América e do ABC, onde se reunia aquilo que a exuberante crônica social de então registrava como o “melhor da alta sociedade potiguar”. 

Citou ainda o Brasil Clube, na esquina da Rodrigues Alves com  a Jundiaí, Tirol, presidência de Joaquim Victor de Holanda, e o Alecrim Clube, no primeiro andar do Edifício Leonel Leite, av. Presidente Bandeira, esquina com a praça Gentil Ferreira. O poeta Antídio Azevedo era sócio honorário, folião de todas as vesperais.

Ticiano não se esqueceu dos bailes populares do então Carlos Gomes, invenção do prefeito Silvio Pedroza.  Mas escaparam ao seu registro a velha Assem, que ainda estrebucha, e o Ícaro, de inesquecíveis matinês.

Fiz um delicioso passeio pela crônica de Ticiano, deambulando por uma Natal que não existe mais.

Bares e clubes da Ribeira, o Francesinha, num primeiro andar da  Frei Miguelinho, os bares e os corsos da Rio Branco, Deodoro  e João Pessoa, no Centro. As vesperais discretas de Maria Boa, o LP da Rozemblit rodando bem alto os frevos de Capiba - “Vamos para a Casa de Noca”, “Que é que vou dizer em casa” -  as meninas  fantasiadas de odaliscas, ciganas, colombinas; no salão decorado de serpentinas e confetes, a lança-perfume passava de mão em mão. Austeros senhores de confrarias e irmandades completavam a festa. Não havia uma briga sequer.  À noite, os austeros cavalheiros da tarde iam com as famílias aos bailes dos elegantes clubes do Tirol e de Petrópolis. Onde sempre havia briga.

Um dia desses, Lauro Bezerra - que é um dos maiores guardadores de papéis que eu conheço por estas bandas de Natal e que foi um dos animadores do Bloco Jardim de Infância, que a crônica social gostava de dizer “bloco de elite”- encontrou-se comigo numa dessas calçadas da vida e,  conversa-vai-conversa-vem, lembrou-se de uma crônica minha de  março de 1981, na qual,  já saudoso, falo dos carnavais natalenses dos anos cincoenta, tendo como mote uma velha fotografia que fui encontrar entre velhos papéis de minhas gavetas desarrumadas.

Pego a deixa da crônica de Ticiano e dou uma parada para acionar a enferrujada máquina do tempo. Já que estamos num domingo de carnaval, certamente diante da televisão esperando o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, recomponho a  coluna de  primeiro de fevereiro de 1981.

Escrevia eu:

"Uma velha fotografia  de uns 22 anos atrás. O bloco carnavalesco  Jardim de Infância posando nas varandas do Grande Hotel. Era o dia do grande assalto ao bar do majó Theodorico Bezerra. Bebia-se e comia-se muito. O majó era um grande anfitrião, esbanjando hospitalidade. Uísque Cavalo Branco, cervejas, lança-perfume Rodo Metálica, bandejas enormes de salgadinhos, tudo muito e à vontade. Não precisava pedir. O majó ia oferecendo e distribuindo, no meio da folia, sob a batalha de serpentinas e confetes.

Fim da tarde, dali saíamos todos para o Aero Clube, em longo corso de vários automóveis. Era a vesperal do Aero Clube. O presidente, dr. Gentil Ferreira de Souza, na entrada, recebia formalmente os meninos e as meninas. Da Ribeira ao Tirol, pela pista de Parnamirim, o corso era  conduzido por Murilo Concentino.

Nos paralamas dos veículos, as meninas de sainhas curtas (as fardas das jardineiras), graciosas, encantadoras moças de Natal. As irmãs Massena! Na fotografia, vejo e revejo; ouço, sinto e cheiro. Saudades! Lá, estamos todos nós,  hoje severos senhores entre quarenta e cinqüenta anos de idade: Tupan, Ronald, Kleber, Cabelo Bom (Carlos Alberto Mota Ramos), Franklin, Hélio Nelson, Zé Mesquita, Tota Zerôncio, Ezequiel, Álvaro (Alvano) Mota, Lauro, Zé Ferreira, Otávio Lamartine, Floro, João Galiza, Heider Moura, Fabiano, Haroldo.

A entrada do bloco no grande salão do Aero era uma apoteose. Os metais da Orquestra de Jonatas d’Albuquerque atacavam com força total o hino do bloco. O clube era nosso.

Vejo outra fotografia. Grande Ponto nos meados de 1950.

Tenho quase certeza de que é fevereiro de 1956, porque nela apareço fardado de cabo do Exército. Estamos na calçada da Cisne, o bar famoso dos irmãos Miranda e que tinha como chefe dos garçons a figura de José Américo, líder sindicalista da classe. Era filiado ao PTB de Getúlio, o broche do partido espetado na lapela do impecável summer branco que fazia uma curva elegante na barriga protuberante.

A Cisne foi, por muitos anos, o “quartel general do carnaval”. Era ali que o Rei Momo Luizinho Doblecheque, reunido com o seu ministério,  assinava seus decretos imperiais, fazia discursos num dialeto que poucos entendiam e bebia grades e grades de cervejas. Dali saíamos a ganhar a cidade que não passava dos 200 mil habitantes. Éramos capazes de chamar pelos nomes todos que passavam no corso pela rua João Pessoa e avenida Rio Branco. Estão na fotografia: Zé Alexandre Garcia, João Meira Lima, Xavier Pinheiro, Rui Xavier  e este cabo escrevente-arquivista,  nº 1204, da CCS do 16º Regimento de Infantaria, apto a terceiro sargento, como está no Certificado de Reservista de primeira categoria.

A Cisne não existe mais. O 16° RI também não. O Grande Ponto, menos. O carnaval já não é mais aqui. É do outro lado. Inventaram-no muito longe, no Alecrim, por pura demagogia e falta de criatividade. Essa Natal não existe mais. A minha Natal resta nestas gavetas, nestes envelopes, nestes bilhetes, nestas cartas, nestas fotografias. Nas minhas saudades.”

E resta ao quase setentão de hoje cantar o frevo de Capiba, imaginando a penúltima volta pelo salão: “Eu bem sabia/ que esse amor, um dia/ também tinha seu fim:/ Esta vida é mesmo assim./ Não penses que estou triste/ nem que vou chorar./ Eu vou cair no frevo/ que é de amargar.”

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