sábado, 16 de abril de 2011

APOCALÍPTICOS E INTEGRADOS NA LONDRES NORDESTINA


APOCALÍPTICOS E INTEGRADOS NA LONDRES NORDESTINA
Apontamentos dispersos para uma breve história do desbunde potyguar
MÁRIO IVO CAVALCANTI
In Palumbo, N° 11, Janeiro de 2011

Dia desses, no Bar do Lourival, pingo do meio-dia, o fotógrafo Marco Polo Veras (1955) autografa, vagaroso, caligrafia caprichada, um após um, exemplares do seu Pipa através do tempo.

Dezembro se esparrama, entre cascos, copos de cerveja e uma legião de amigos. A segunda década do milênio se aproxima. Antes que chegue, o médico Pedro Cavalcanti se despede, entra em um Maverick vermelho e dispara, motor rosnando, pneus cantando e uma chuva de pedras que voam, do meio-fio para as mesas da calçada. “A minha turma é assim”, engata rápido Marco Polo, “só tem playboy”.

Houve um tempo, em Natal, quando a playboyzada se confundia com a galera. Às vezes, não havia uma divisão nítida em quem era um, quem era outro, embora as duas tribos se mantivessem, quase sempre, separadas. Houve um tempo, então, a parada era dura. A era militar. Segundo o músico Mirabô Dantas (1947), falando sobre os sixties em Umas histórias outras canções, “a cidade tinha que conviver com o karma, se assim podemos dizer, de ser a Cidade Espacial do Brasil, ou seja, de abrigar uma base de lançamento de foguetes, o que tornava a nossa pequena e pacata capital em uma cidade ainda mais vigiada, " mais militarizada, mais repressiva”.

O que não impediu ao pernambucano Jomard Muniz de Britto (1937) se surpreender com à profusão de Beatles e Rolling Stones rolando nas vitro­las locais. E mais: “Foi em Brasília Teimosa onde eu ouvi pela primeira vez Jimi Hendrix”, afirmou Jomard, autor do famoso epíteto para a Cidade do Natal: Londres Nordestina. London Burning.

O que não impediu, também, a José Humberto Dutra (1947) descrever, em pleno ano do golpe, as artesanias de um baseado em Geração dos maus: “Abriu o pacote. Colocou um pouco do seu conteúdo no papel e com um pente acochou. Enrolou, passou a ponta do papel nos lábios e com a saliva fechou o cigarro.”

Deve ser a única referência ao verbo "acochar" na literatura nativa. Surpreendente, se levarmos em conta que até o enfant terrible dos anos 80, o poeta e escritor João Batista de Morais Neto (1961), o João da Rua, usou de associações para descrever as típicas cenas underground, em seu miniromance Temporada de ingênios. “Casa da rapazi é uma loucura. Fauna delirante de hospício. Embaixada da Jamaica. Casa dos amigos de Artaud. Principado de Greenwich Village. Sexo, drugs and rock in roll. Biblioteca dionisíaca. Poemas de Piva, discos de Mautner, desenho de Miró, prosa de Kerouac."

Ah, sim, Kerouak. José Melquíades (1925 – 2001) é, provavelmente, o primeiro potyguar a descrever os beatniks, no primeiro ano da décaca de 60, em Os EUA, a mulher e o cachorro, aproveitando para revelar e reforçar o preconceito vigente: “São rapazes barbados e cabeludos, enquanto as poucas moças que integram o grupo são esquálidas, exóticas e excêntricas no vestir. Todos se queixam da vida e reclamam as leis. É a geração dos insatisfeitos. É um verdadeiro contraste entre a limpeza e o asseio, a felicidade e a responsabilidade da civilização americana."

Segundo Melquíades, os beats não apenas fumavam maconha, mas “em suas festas, se misturam com os negros”. O autor os viu in loco: "Visitei exposições de arte, cafés, cabarés e me assenhoreei de todas as suas atividades. São introversos e arredios com o estranho, e por isso, temi me aproximar de um deles ou de uma delas.”

Nada de novo na Noiva do Sol - lembra a descrição de Djalma Maranhão (1915-1971) para a turma exótica do final dos anos 40, na Ribeira ainda nova de guerra: “Quando tem companhia teatral na cidade, é muito fácil saber-se porque pela esquina famosa desfila constantemente uma rapaziada ‘cabeluda’, com longas melenas cobrindo as orelhas, com pose de artista e mulheres às vezes muito ‘boas’, mas geralmente idosas e com olheiras artificiais exageradamente pintadas.”

Aliás, Maranhão já classifica as turmas - senão entre apocalípticos e integrados, desbundados e playboys, caretas e transviados, estabelecidos e outsiders - em duas correntes: o Movimento do Pró e o Movimento do Contra. O primeiro “chefiado pelos rapazes (e podemos chamar quarentões de rapazes?) da revista Bando, que os irreverentes, os chamados cripto-comunistas classificam de Bando Fascista.”

Na turma do contra, liderados por Antônio Pinto de Medeiros (1919-1970), os expoentes eram Joanilo de Paula Rego (1928) e Walflan de Queiroz (1930-1995), que chegaram a ser processados por fazerem uma serenata em pleno cemitério, um escândalo à época. Era uma turma pra lá de beat: “Não botam açúcar no café com a colher, derramando desleixadamente o açucareiro na xícara. O laço da gravata deles é diferente e mais um mundo de coisas diferentes.”

“Sinto-me marginalizado em meio à burguesia”, relatava Joanilo de Paula Rego, 1977, quase três décadas depois, em entrevista a Osair Vasconcelos, que descreve, maravilhado, sua coleção de quatro mil discos e seis mil livros, de Bach a Bob Dylan, de García Lorca a Aldous Huxley. “Prefiro não ser compreendido pela legião dos bem-comportados, dos quadrados e dos enquadrados.”

Ah, sim, o poeta Antônio Pinto de Medeiros. Descrito por Veríssimo de Melo como “incendiário, numa época em que todos ou quase todos eram bombeiros”, foi o único mortal da Academia Norte-rio-grandense de Letras a desistir das glórias da imortalidade. “Estava sem paletó, vestindo camisa de meia com listras finas de azul e vermelho, calçando alpercatas abertas”, descreveu Otto Guerra, testemunha do momento histórico.

O vestuário exuberante tampouco era novidade - Cascudo cita o "frack esverdeado" e o colete "entre lilás e vermelho" de Ferreira Ita­jubá (1876-1912), sempre acompanhado do “violão de folhas de flandres (para a chuva não descolar)”. Numa época em que os bailes contavam com uma “quadrilha imperial, marcada em francês”, os sapatos eram de pelica inglesa e “ninguém ia ao baile senão de preto e de casaca”.

Os poetas oficiais não aprovavam a figura desengonçada de Itajubá: “doido para figurar em todas as associações, era recusado por todas."
Moda sempre foi - também - a praia do poeta Blecaute (1961-1999): camisa azul celeste, blazer e calças cor de goiaba, colar de contas alaranjadas, pulseiras de metal prateado, tênis brancos e meias roxas "de monsenhor" - a descrição é de Franklin Jorge (1952) em Spleen de Natal. Moda pra chocar, sempre, essa dos poetas marginais. “A polícia o persegue nas ruas como um animal perigoso”, explicou Jorge, “é pobre e tem a ousadia de vestir-se de acordo com os caprichos de sua imaginação”.

Ah, sim, e a propósito, Franklin Jorge. Seu alterego, Jorge Antônio, resume o espírito anticonformista da época, das épocas, aliás, que tudo se repete desde sempre: “As regras não faziam nenhum sentido para nós, que desejávamos dinamitar o edifício do sistema.”

Estar à margem nunca foi moleza. Othoniel Menezes (1895-1969), o “príncipe dos poetas potiguares” (ou o “príncipe plebeu”, na definição certeira do seu biógrafo Cláudio Galvão) resumia para o poeta Damasceno Bezerra (1902-1947) o que valeria para quase toda uma geração futura, incluindo ele mesmo: “paga bem caro o sinistro privilégio de haver nascido, grande poeta, em terra de mercadores.”

Exceção à regra - no sentido que, aparentemente, não estava nem aí - Juvenal Antunes (1883-1941), autor do mais que famoso Elogio da preguiça. Radicado pelas bandas da Amazônia, volta e meia retornava ao seu Ceará-Mirim, onde “cumprindo a receita helioterápica do facultativo acreano que em primeira mão me examinou as pernas de raça fina, já estou aqui, às 7 da manhã, de gâmbias ao sol, estirado numa preguiçosa ... As camponesas, que passam pela estrada, me dão respeitosamente as horas. Eu, sempre ingênuo como os poetas em geral,lhes correspondo com as pernas ... Enfim, estou gozando a sensação inédita de ser julgado maluco."

Se para os mancebos a rapadura não era mole, não, imagine para as senhorinhas, obrigadas a andar sempre na linha. A poeta Isabel Gondim (1839-1933) - citada por João Medeiros Filho - não aprovava nem um pouco o comportamento avant-garde de Nísia Floresta (1810-1885), que teria se aproximado do primeiro marido numa festa a “soçobrar uma guitarra e à exibir os seios”. A seguir, casada, “adúltera, exibindo sem rebuço na capital do Rio Grande do Norte a vida livre que adotara”, termina por se separar, casar novamente, e partir, de vez, para o exílio na França.

O ambiente era pesado a quem nadava contra a corrente. Daí a visível sensação de liberdade experimentada por Mário de Andrade (1893-1945) quando, depois de uma temporada em terras potiguares (na casa de um Cascudo recém-noivo, “me prolongando pelas quietudes de Natal”), parte para Recife.

As notas de viagem são sintomáticas - entre 14 de dezembro de 1928 e 27 de janeiro de 1929, anota várias vezes: “dia besta”, “dia bestinho”, “continua bestice”, “apenas coisinhas natalenses”. Na capital pernambucana, em pleno carnaval, o dia 9 de fevereiro é de acordar "bem disposto": “Pelas 22 [horas] Cícero [Dias], Ascenso [Ferreira] amigo do Cícero estão num porre formidável de éter. José Pinto e eu vamos no meu quarto de hotel tomar coca. Surge o pessoal todo que soube pelo merdinha do pintor [Cícero Dias] do caso da coca. Daí em diante o pessoal, principalmente Ascenso, se tornaram intoleráveis.”

José Pinto era natalense, irmão de Adamastor Pinto, e aparece não poucas vezes acompanhando o paulistano desvairado na farra pernambucana. No dia 10, domingo de carnaval, escreve Mário: “Acabei no Palace com amigos de improviso e o José Pinto, cocaína e éter”. Dia 12: “De-noite, depois de livre do Ascenso, pude com mano de Adamastor e outros, tomar o pó e éter loucamente. Passei o resto da noite, por me sentir ainda com o resfriado do dia antecedente, passei a noite sob efeitos reprovocados de coca e éter, uma luxúria até 6 da manhã.”

Há de se notar que a cocaína, então, era razoavelmente tolerada, e a repressão só seria fortalecida na década seguinte, sendo seu uso retomado lá pelos anos 80, inclusive na Capital Espacial do Brasil, sempre de modo não declarado, o que faz o poeta Adriano de Sousa (1962) comparar Natal, em O alvissareiro, a “uma boca de pó malhado” (“eu vi os seis-botões dos bacharéis beletristinhos/ batendo uns epigramas na pia marmórea”).

Entre idas e vindas, porralouquice e caretice, tudo indica que o apogeu e glória da Londres Nordestina se deu pelos idos de 1973, ano em que a revista Veja publica uma matéria onde se lia: “a 'ripongada brava' anuncia que vai tentar a praia dos Artistas, em Natal, onde já funciona uma sucursal provinciana do ‘desbunde’”. E Sebastião Carvalho publicava matéria no número 6 dos Cadernos do Rio Grande do Norte intitulada “Praia dos Artistas as grutas do barato”, numa referência explícita às Dunas do Barato cariocas.

Noves fora o percurso, às vezes trôpego, às vezes decadente, do barato potyguar, a paraibana Clotilde Tavares (1947), protagonista de mil e uma aventuras na Cidade do Sol, resume a odisséia apocalíptica em poema dedicado, pois não, ao beat Allen Ginsberg: "& eu/ que uivei como um cão danado pelas esquinas da década de 60/ & eu/ que me encharquei de drogas & sexo & rock nos inferninhos da década de 70/ & eu/ que me banho de álcool & solidão nas páginas da década de 80/ [ ... ]/ & se eu não tivesse feito tudo isso/ & se não fizer tudo isso/ vale a pena ainda/ estar viva?”

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