quinta-feira, 29 de outubro de 2009

... nem ele sabe ler

Yasmine Lemos


Ontem, no sarau, Rodrigo Bico perguntou se Rubens tinha uma poesia.
Ele respondeu que sim, mas era segredo. Só sabia o nome: "O coração das flores".
Eu me espantei com a resposta, pois não tenho poema com esse nome... nem ele sabe ler.
Hoje, acordou e me chamou para que eu escrevesse a poesia no papel, enquanto ele falava.

E aí, saiu:



O CORAÇÃO DAS FLORES

A terra está assombrada.
Os passarinhos estão cantando sua melodia
Os passarinhos são tão bonitinhos.

Então, o amor é nosso
porque o coração das flores fica perto dos espinhos
E o coração pede abraço.

Um abraço,

Rubens Neto
29.10.2009
(Ele ditando e eu escrevendo)

"Beco da Lama" será encenado

Espetáculo "Beco da Lama" será encenado em fevereiro de 2010 e vai abrir audições para elenco


O espetáculo “Beco da Lama”, baseado no texto teatral “Esquina do mundo - a hora do cão-lobo”, de Cláudia Magalhães (recentemente publicado em livro), vai ganhar os palcos natalenses. Aliás, um galpão. Sim, porque a idéia do encenador João Marcelino e do diretor musical Danilo Guanais (foto) é de montar a peça em um galpão na Ribeira, bem aos moldes das encenações de Zé Celso Martinez Correia e do Teatro da Vertigem, que fizeram história em São Paulo. E a idéia se adéqua bem ao espírito da peça, que mostra bêbados e marginais em um bar, em um beco que é o da Lama, mas que pode ser qualquer beco de qualquer lugar do mundo. Com a produção executiva de Ana Lira e Fernando Rocha, o espetáculo tem previsão para estrear em fevereiro de 2010. João e Danilo vão abrir audições para escolher o elenco do espetáculo musical (ou seja, como nos bons musicais americanos, tem que saber interpretar e cantar, os desafinados que vão para outras plagas, como diria João Gilberto) em data e lugar e serem definidos. Mais informações através do e-mail dguanais@musica.ufrn.br

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A Santa Cruz da Bica

Manoel Procópio de Moura Júnior, procurador, advogado e escritor

Foto: Karl Leite

Cruz da Bica

Lamentavelmente os jovens de hoje não tiveram a alegria e o sorriso espontâneo dos "flertes" acontecidos nas festas populares da cidade do Natal, particularmente, na festa realizada no dia 03 de maio, data em que se celebra a chantação da Santa Cruz da Bica, no Baldo, próximo ao prédio da Cosern.

Na década de 1950, sendo morador do bairro da Cidade Alta, inúmeras vezes passei por aquela relíquia sem me dar conta da sua importância histórica. A Santa Cruz da Bica tem sua gênese na fundação da cidade quando duas cruzes foram cravadas para demarcar os limites da Cidade do Natal.

Uma foi colocada no extremo norte, na ladeira que leva ao bairro da Ribeira, próximo ao prédio da Ordem dos Advogados do Brasil, secção do Rio Grande do Norte, na Rua Junqueira Alves, que à época ficou conhecida como Rua da Cruz. Depois, em março de 1888, a rua passou a se chamar Cons. João Alfredo, permanecendo até março de 1896, quando recebeu o nome Junqueira Aires que a identifica hoje.

A outra foi plantada no extremo sul, à margem do Rio Tiçuru, que deu de beber à cidade, no início do século, por isso também chamado Rio da Bica, hoje Rio do Baldo, ficando o assim demarcados os limites da cidade Noiva do Sol, como se referia Câmara Cascudo à Cidade do Natal.

A primeira cruz desapareceu com o tempo, a segunda fincada perto do rio do Baldo, foi posteriormente transferida para uma parte mais alta ficando, com o tempo, esquecida entre as árvores de um bosque. Na segunda metade do Século XIX, os irmãos Trajano, Lopo e Claudino de Melo, foram à colina cortar madeira para construção de casa, e encontraram a cruz escondida entre as árvores.

Os três irmãos, juntamente com vários conhecidos, a retiraram do local e a levaram para o espaço em que se encontra hoje. Na data de 03 de maio, alguns fiéis iniciaram um terço ao lado da cruz, mesmo sem a presença de um padre. A partir de sta iniciativa litúrgica a celebração passou a atrair muitos devotos, tornando-se uma festa popular.

Recordo-me daquele artefato histórico instalada na confluência das ruas Gonçalves Ledo, Voluntários da Pátria e Santo Antônio, ornado com fitas coloridas. Tive a alegria de participar de vários festejos onde após as preces ali realizadas, uma banda enchia o ambiente de musicalidade. A mocidade degustava guloseimas e exercitava namoricos, enquanto no céu se escutava o pipocar dos fogos de artifícios.

Naquela época, residiam nas vizinhanças daquele patrimônio cultural as famílias de Luiz Marcelino, Sergio Santiago com suas filhas Zélia e Lélia, Luiz Tavares, Dona Urcy e seus filhos, Odúlio, Maneco, "Cabo Zé", Carlinhos e Luciene (esta casada com João Medeiros Neto), todos sempre presentes nas festividades da Santa Cruz da Bica já que os moradores daquele quarteirão e adjacências participavam efetivamente das manifestações ali rea lizadas.

Algumas autoridades municipais tentaram preservar aquele monumento, no entanto, as intempéries do tempo acabaram por destruir aquela relíquia histórica, existindo nos dias de hoje, na pequena praça ali erigida, um cruzeiro que guarda alguns fragmentos da peça original.

Esta situação fez com que as manifestações populares daquele logradouro fossem gradativamente ficando no esquecimento, no entanto, aquele relicário, nunca deixará de ter a sua importância para a Cidade do Natal, porque em qualquer tempo, por mais incúria que exista, a Santa Cruz da Bica é um pedaço da história da Cidade do Natal.

sábado, 24 de outubro de 2009

Ribeira


A imagem "http://www.destinodosol.com.br/html/destinos/cidade_do_sol/natal09/album/slides/141.jpg" não pode ser mostrada, porque contém erros.

A RIBEIRA NÃO ERA SÓ BAIRRO, ERA VIDA E TIPOS QUE MOVIAM A CIDADE, FAZIAM-NA HUMANA E INTELIGENTE, CONHECEDORA DO MUNDO, VIA BOCA DA BARRA DO POTENGI.

EDUARDO ALEXANDRE

A Ribeira que eu conheci na infância não é a Ribeira de hoje, esquecida da população e dos governantes. Era uma Ribeira ativa onde o cais da Tavares de Lyra tinha vida e albergava misteriosas caravelas vindas de não sei onde e que faziam povoar de piratas e aventuras minha imaginação de menino.

Era a Ribeira do porto movimentado, quando as estradas ainda não tinham rasgado os interiores e todo o transporte era feito por mar, necessitando dos trabalhos do despachante aduaneiro, com seus escritórios movimentados e gente a conversar sobre tipos e acontecências quase que só da cidade, já que o resto do mundo era distante e, portanto, de pouco interesse.

Era a Ribeira do casarão do maestro Alcides Cicco a abrigar araras de coloridos especiais e um sem número de passarinhos, que o atraiam a uma conversa com o meu avô despachante, José Alexandre, também ele um amante de canários belgas, pintassilgos, galos-de-campina e curiós, com seus cantos dobrados e de sonoridade sem igual.

Ribeira do Teatro Alberto Maranhão onde reinava, vitaliciamente, o circunspecto senhor teatrólogo Meira Pires, a contar vantagens sobre suas peças que nunca vi encenadas, mas que enchiam de curiosidade a minha imaginação.

Do casarão de Cascudo, que nunca ousei adentrar, devido ao respeito à figura que costumava ver às tardinhas em conversas amenas na velha Confeitaria Delícia do português Olívio Domingues da Silva, com sua perna dura e a sua alma imensa a distribuir sonhos de valsa e torrones que, claro, iam para a conta do meu pai, Zé Alexandre Garcia, a tomar umas no reservado com Newton Navarro, Dozinho, Mozart Silva e tantos outros boêmios que povoavam com humor e sabedoria o centenário bairro.

Como esquecer um Zé Areia, aquela figura que chegava e que atraía a atenção de todos com os seus repentes geniais a responder provocações propositais? Impossível. A Ribeira não era só bairro, era vida e tipos que moviam a cidade, faziam-na humana e inteligente, conhecedora do mundo, via boca da barra do Potengi, cenário de memoráveis regatas bravamente disputadas entre remadores dos clubes náuticos da rua Chile. Ribeira das companhias de pesca e da Estação Ferroviária, lenta, barulhenta e misteriosa.

Ribeira de jornalistas e de jornais, de prostitutas e prostíbulos famosos, que nunca adentrei mas que atraiam a minha curiosidade em suas janelas nem sempre escancaradas. Ribeira do nojo do Beco da Quarentena. Do mundo fantástico das publicações da Agência Pernambucana. Dos bares invadindo calçadas. Das peixadas. Dos salões de barbearia onde de tudo se conversava. Dos salões de jogos. Dos engraxates e sapateiros a céu aberto, em suas cadeiras imensas para mim, garoto.

Ribeira nostálgica do quiosque e da pontezinha do jardim chinês que quase a memória esqueceu, destruído que foi pela construção da nova rodoviária que parece, levou-o para nunca mais voltar.

Ribeira do Grande Hotel e do major Theodorico, homem lendário a pastorar diariamente a praça da igreja do Bom Jesus das Dores, a abrigar ossos dos Amorim Garcia, lacrados em urnas em suas paredes já centenárias. Ribeira inesquecível de “A República”, da Capitania dos Portos e da vacina contra a febre amarela, terror dos viajantes. Ribeira de Luís Tavares e de suas estórias de brigas com gringos e policiais dos idos da guerra.

Ribeira sem dúvida inesquecível. Poeticamente mágica e deliciosa, professora de gerações.

Ribeira bancária, alfandegária, comerciária, gráfica.

Ribeira cartorial.

Tirol, Natal/RN, 1995

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Isaduda: uma tristeza que toma conta

Eduardo Alexandre

"Foi verdade: a @isaduda suicidou-se hoje... LUTO... uma tristeza que toma conta..." Sâmara Tessa

Por volta das 20 horas, toca a campainha e vem a notícia: Isaduda jogou-se do décimo-segundo andar do prédio onde morava com a família.
Nunca a vi, mas tinha com ela uma relação quase diária por telefone:
- Arthur está?
Era uma vozinha acanhada, sofrida, como quem chora. Parecia uma súplica.
Muitas vezes, contrariando minha vontade, acordei Arthur pela manhã, mesmo sabendo que ele passara a noite acordado, no computador, baixando arquivos, vendo filmes, resolvendo problemas de informática e Internet para amigos ou clientes.
Os telefonemas de Isaduda, em qualquer hora do dia ou da noite, já chegavam em casa há mais de cinco anos.
Logo no começo dessa amizade, veio um telefonema de sua mãe, desesperada, a procura de Arthur. Depressiva ao extremo, Isa ameaçava se matar, pulando pela janela. Queria que ele fosse a sua casa, conversar com ela.
Era uma depressão crônica, diária, impregnada na alma daquela menina.
Nunca entrei em detalhes sobre as causas de tanta dor, mas, pelas primeiras conversas, me parecera consequência de perda amorosa. Por morte.
Hoje, depois de ver a movimentação cochichada lá embaixo, no portão, ver os portadores da notícia se afastarem, seguirem destino e Arthur retornar para dentro de casa, desci e perguntei o que estava acontecendo.
Isabele resolvera dar fim àquela dor.
- Puta merda! exclamei, me sentindo derrotado e imaginando como seus pais, amigos e amigas estariam mais ainda se sentindo.
Isaduda era cercada de muito carinho, de muita atenção por parte de todos que perderam essa parada.
Às vezes, eu procurava avaliar a agonia, o desespero de seus pais, amigos e amigas diante da iminência do que um dia viria a acontecer.
A angústia, a dor profunda da alma, fizera de Isaduda suicida potencial.
Hoje, ela pôs fim a sua dor.
Maior ficou a dor dos que não puderam salvá-la.


segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Uma província à luz do sol

Reeditado a partir do
http://geocities.yahoo.com.br/natalnareia/

Ponta do Morcego
Não editada no documento original

O tempo passava e o mar se tornava cada vez mais próximo, mais presente. Nos anos trinta a quarenta, ele era pouso obrigatório das famílias de classe alta, que durante o verão migravam para a areia, mudando-se completamente para as suas residências praieiras. Eles levavam mobília, pertences, empregados e, por até três meses, fixavam-se ali. Não havia visitas esporádicas à cidade. O reabastecimento dos mantimentos ficava por conta de algum criado, que ia e voltava da cidade à pé, trazendo os pacotes nos braços.

Muitas de nossas praias urbanas encontravam-se ainda selvagens, seu grande atrativo era a tranquilidade, o repouso. Natal já possuia muitos dos traços urbanos da época e as pessoas buscavam modos alternativos de vida durante as férias, fugindo da cidade.Os veraneios de antes eram bem semelhantes aos de hoje, as diferenças ficavam por conta da relação entre as pessoas, todos ali eram amigos, parentes, conhecidos ou filhos de conhecidos. Havia segurança e confiança nos nativos do lugar. Os pescadores da área ajudavam a vigiar as casas e tinham livre acesso às suas portas. Claro, o mar era um prazer para um público seleto. Contavam-se poucas casas de veraneio, mas estas congregavam bastante gente, grandes famílias com muitos filhos, primos e sobrinhos.

Capela do Forte dos Reis Magos em ruínas
Não editada no documento original

Os novos exploradores do mar tinham liberdade para conhecer a área e descobrir os brinquedos do litoral. O território do Forte dos Reis Magos era aberto, sem vigilância, o que o tornava cenário favorito dos pique-niques organizados na época, uma diversão que durava um dia inteiro. A rotina dos dias resumia-se a passeios, brincadeiras na areia e banhos de mar, este último, o mais apreciado. As noites ficavam por conta dos violões dos seresteiros, que reuniam toda a gente das vizinhanças nos alpendres, embalando flertes e conversas com suas canções, que fluiam ao sabor da maresia.

O médico Jahyr Navarro, antigo veranista da praia de Areia Preta, - a primeira a abrigar esse tipo de casas - acompanhou o desenrolar de três décadas naquelas areias. Ele recorda que quando menino seu passatempo favorito era escorregar nas dunas sentado numa prancha de madeira, lubrificada com um pouco de cera de vela. Isso, em 1935, muito antes de alguém associar essa prática ao esporte de neve e apelidá-la de "skibunda". Navarro lembra de detalhes do cotidiano nas praias, como o ônibus amarelo da Força e Luz, única alternativa de transporte além do bonde. "Era um ônibus amarelo da companhia de luz elétrica, que quando chovia era obrigado a ultrapassar o barro acumulado na ladeira do sol de marcha ré, as crianças o usavam como meio de chegar até a escola".

Areia Preta - Anos 50

Saudoso daquele tempo, Jahyr recorda ainda a atmosfera das praias na década de cinquenta, quando se reunia com seus companheiros no bar "É Nosso", para ensaiar as marchinhas de carnaval que seriam cantadas nos bailes do Aero Clube - sucessor do Natal Clube na preferência do high society. Vem dessa época também, o surgimento da Praia dos Artistas, mais reservada que as demais. A origem do apelido deve-se a fama de ter hospedado os grandes artistas do rádio, como Cauby Peixoto, Francisco Alves e Maria Creuza, que a escolhiam por estar mais distante da concentração de pessoas. Lá eles podiam tomar banho isolados na prainha. Algum tempo depois a fama de esconder artistas começou a atrair mais gente para a praia, afastando os frequentadores ilustres, mas, deixando o rótulo.

Começava a se espalhar a moda da paquera na areia, "Conhecíamos o ‘ponto’ onde cada moça tomava sol. Elas sempre escolhiam o mesmo lugar, para facilitar o acesso dos pretendentes", afirma o médico. Claro, todo o envolvimento transcorria com muita discrição, não se sonhava ainda com as ousadias de hoje em dia.

Na década de cinquenta, as praias de Natal tiveram a exibição do que seria um traje de banho moderno. A primeira mulher a pisar vestida de maiô numa praia de Natal foi uma aeromoça espanhola, trazida por um rapaz chamado Faruk. A visão das suas curvas ajustadas na peça, que se estendia até os joelhos, desencadeou um tumulto imprevisto nos rapazes, que ameaçaram reduzir bem mais o tamanho do traje, arrancado-o aos pedaços. Felizmente, a moça foi protegida e seu maiô escapou ileso. Era a modernidade começando a arranhar nosso provincianismo.

Música, arte e psicodelismo na areia

Mas, cedo ou tarde as mudanças chegariam. Nos anos sessenta a concentração de banhistas se deslocaria de Areia Preta até a Praia do Forte, com suas piscininhas naturais e a imponência do Forte dos Reis Magos guardando o lugar. Para lá se dirigiam as famílias, crianças com pás e brinquedos de areia, casais de namorados que caminhavam de mãos dadas sob o olhar de todos.

Areia Preta – Anos 60

A Praia do Meio, na sua condição de ser do meio, deixava que viessem a ela as classes mais baixas: quem descia das Rocas ou tomava o ônibus no Alecrim ou Cidade da Esperança. O pessoal de uma praia não invadia as areias da outra, cada um consciente de seu espaço.
Com os anos setenta, novos ventos sopraram naquele pedaço de praia. A revolução mundial dos costumes refletia por aqui. Contracultura, movimento hippie, baseados, tudo isso vinha aportar também em nossas praias. Filmes como Easy Rider e Woodstock eram exibidos na Sessão de Arte do cinema Rio Grande, discos dos Beatles e dos Rolling Stones evaporavam das prateleiras. O comportamento jovem passava a ter outro relevo. Tudo era determinante, as roupas que se usava, aquilo que se comia e, claro, a praia a qual se frequentava. Segundo o músico Luiz Lima, que viveu ativamente essa época, " no início da década de setenta, começou a acontecer uma transformação nos ares e nos lugares da cidade, em toda parte a moçada começava a se dividir. De um lado ficavam os ‘caretas’, de outro, nós, os ‘malucos’ ".


Para os caretas, tudo continuaria igual, já os outros precisariam de mais espaço para estravazar sua arte e inconformismo, distante da área militar e família da Praia do Forte. Foi aí que se descobriu a Praia dos Artistas.

Praia dos Artistas – Anos 70

A praia deixava de ser um lugar destinado apenas a caminhadas ou banhos de sol e mar, tornando-se porto para o deleite do corpo e da mente, aproveitado ao longo de todo o dia e também durante a noite. Logo começaram a surgir bares, barracas, quiosques, boates, espaços culturais, que se estendiam da Praia dos Artistas até a Praia do Meio, que se tornaram cartão de visita de Natal e grande opção de quem quisesse conhecer a noite da cidade.

As areias ganhavam o colorido das batas indianas, camisetas explodindo em motivos psicodélicos, e o brilho dos corpos ao sol rivalizava com o brilho das lantejoulas ao luar. Arte e cor eram trazidas por uma grande leva de estudantes universitários, pretensos artistas locais, que tinham na Praia dos Artistas seu ancoradouro. O país atravessava uma fase de ditadura e opressão, talvez por isso, o ato de criar se fizesse tão necessário.

Poeta Carlos Gurgel

Bares como o Tirraguso, o Artmanhas, a Casa Velha se enchiam de rostos jovens. Eram atores, dançarinos, artistas plásticos, poetas ensaiando o que ia ser a época de ouro da cultura da cidade. Todos fazendo uso daquele espaço para mostrar o que sabiam. E não parava por aí...o tinham as barracas toscas da Praia do Meio, ainda na areia, como a famosa "Barraca da Marlene" para quem queria sentir o mar perto. "Era nas barracas que nos reuníamos para compor as melodias da banda Gato Lúdico, eu, Jaime Figueiredo, Carlos Lima e Claudio Damasceno. Lá vivíamos noitadas acompanhados do violão, dos mixes de cachaça com cerveja e tiragosto", lembra o arquiteto e artista plástico Vicente Vitoriano.


Galeria do Povo – Praia dos Artistas
Não editada no documento original


Na época, a praia possuia dois espaços culturais: a Galeria do Povo e o Artelier. Também abrigando o primeiro restaurante macrobiótico de Natal, onde o pessoal ia se liberar das toxinas consequentes dos excessos noturnos com os pratos do proprietário Véscio Lisboa. Na segunda metade dos anos setenta, surgiu o Festival do Forte, idealizado pelo músico Luiz Lima, o artista plástico Sandoval Fagundes e o escritor Carlos Gurgel.


Artistas natalenses ocupando o Forte dos Reis Magos para o I Festival de Artes do Natal

"O festival acontecia na terceira lua de cada mês e era um momento de muita música, muita poesia e muita loucura, depois disso, nunca houve nada em Natal tão contundente para nossa cultura como o Festival do Forte", recorda hoje Gurgel, com os olhos cheios de nostalgia. Yuno Silva, estudante de Comunicação, era criança nesse período, mas lembra de quando era levado pelos pais junto com o irmão para curtir o festival, "Os moleques ficavam pulando naquela casa de armar no meio do Forte. Era incrível, sendo criança, ver de perto artistas como Raul Seixas, Gil, Jorge Mautner, Jards Macalé...são tempos que não voltam mais."


Galeria do Povo Foto: Marcus Ottoni

Dunga e Volontê na Galeria do Povo, 1977

Durante os anos setenta e oitenta, a praia dos artistas era um lugar concorrido durante toda semana. A jornalista Cione Cruz diz que " a partir das quintas feiras, íamos à praia de dia para tomar sol e à noite exibíamos nosso bronzeado nos bares e boates de lá". Havia ainda uma turma que fazia da praia dos artistas a sua casa, gente que chegava de manhã, depois da aula, de mochila nas costas, trocava o calção de banho e ia jogar frescobol nas areias ou surfar naquelas ondas. Um bom exemplo desse tipo de frequentador era o jornalista Flávio Rezende, assíduo jogador de frescobol, "chegava por volta da 11, 12 horas, depois das aulas do curso de Comunicação da UFRN e ficava até às 18 horas". Nos anos oitenta se intensificou também a prática do surf, daí vieram o campeonatos ao bar caravela, transmitidos nos alto falantes. "Sinto saudade do rock muito alto que tocava durante os torneios, dos amigos sem hora pra ir embora, as paqueras na beira da praia e os beijos na boca apaixonadíssimos, que até deixava a gente meio fraco..."


Com a ida dessas décadas, foram-se também a grande maioria dos frequentadores do lugar. A maturidade e as ocupações iam distanciando pouco a pouco os antigos. E a falta de segurança inibia a formação de uma nova geração de praieiros. A reurbanização e construção dos quiosques de cimento, ao invés das barracas, não foram suficiente para assegurar a reestruturação da área.

Natal acontecia agora bem longe dali. As diversões eram outras, as praias também. A burguesia ia de carro até os distantes litorais norte e sul, procurando aquilo que já não se via mais no urbano: segurança, tranquilidade. O desfile de beleza nas praias urbanas, as paqueras no calçadão, davam lugar a um outro tipo de oferta. O "quem me quer" adquiria outra feição com a explosão do turismo e a procura dos estrangeiros pelas mulheres locais.


Somente o mar continua o mesmo


O mar urbano traz nas suas espumas as lembranças... a bruma e o seu cheiro são os mesmos, mas a ambientação mudou.
Espigões enormes dividem mar e cidade, no alto da ladeira do sol.

Arredores menos disputados, deslocados e diferenciados. A praia dos artistas concentra alguns bares, duas boites e um restaurante badalados, dividindo espaço com lojas e feirinhas de artesanato. Dividindo seu público com as feirinhas de artesanto. Da praia do meio em diante, é visível o abandono.

Um outro hotel e algumas pousadas, o centro de artesanato e os quiosques esquecidos, num lugar antes abrilhantado pelo público mais exigente da cidade.


Tenda do Cigano

A Tenda do Cigano, com seu caldo de feijão a

cavalo, era o fim de noite para muitos

"Quando a barraca era na areia, o movimento era muito bom. Hoje a época é outra", fala a saudosista Marlene Dias da famosa "Barraca da Marlene", descrente de dias melhores, nos seus 22 anos de praia. Para os frequentadores antigos das praias não restam dúvidas: as barracas à beira-mar deixaram saudades.

Simbolicamente os atuais quiosques chegaram para assistir ao fim áureo. A segurança, agora fragilizada, um dia já garantiu que as pessoas pudessem frequentar e visitar os locais praieiros com tranquilidade.

Enquanto foram redutos de muitos turistas que ficavam hospedados no Hotel Reis Magos, as Praias dos Artistas e a do Meio, viviam sua época de agitação. Hoje, o turismo é uma questão abordada com delicadeza por inferir imediatamente a exploração sexual das redondezas. Os turistas que procuram se instalar nas pousadas dessas praias, muitas vezes estão ali por economia. Como é o caso da jornalista sueca Agatha, 34 anos e o seu marido Chrytian, de 37. Eles dizem preferir fazer de conta que não vêem o que acontece de feio nas proximidades da pousada e ir conhecer outras praias do Estado.

Centro de Artesanato foi construído onde se fazia a Galeria do Povo


Os demandos socioeconômicos encontrados pelas areias urbanas da cidade do Natal deixa evidente o processo de decadência que está sendo vivido. "Encontramos nas praias crianças com fome, envolvidas com drogas e prostituição. A sociedade e os governos não podem permitir isso de modo algum, principalmente de maneira tão visível como aqui", comenta Andréia Barros, que trabalha no comércio de artesanato na praia do Meio.

As praias já foram redutos de grupos que passavam horas agradáveis curtindo todos os prazeres possíveis, e produzindo arte e cultura na cidade num dos painéis mais bonitos. Agora, os poucos resquícios da invasão das artes dos anos anteriores são guardados. Somente as feiras de artesanato e os vendedores de artefatos hippie permanecem. Como o artesão Henrique Eduardo, 32, formado em Engenharia Textil, que hoje sobrevive da venda de suas bijouterias e tem os turistas como clientes."Gosto de trabalhar nas ruas, quando não estou aqui vou para Ponta Negra".

As perspectivas para o futuro do comércio e dos moradores das praias ainda não são muito calorosas... projetos de revitalização abrangentes devem ser providenciados, sendo a revitalização humana talvez a mais urgente... para um pedaço da cidade que tem estimulado a deploração.

domingo, 18 de outubro de 2009

ALMA DE BECO, DE BEBO, DO BELO

Sérgio Vilar

Às vezes penso em território boêmio como proibido. Ali, repousam almas sedentas. E o leque de desejos é amparado pela ânsia. Assusta.


No Beco da Lama é diferente. Sempre foi. É chão escorregadio, sim. Mas cabe todo mundo. E freqüentam quase todos. Quase todos os de alma libertária. É como na vila da Redinha: o gosto pelas coisas simples se faz necessário para sentar, beber e prosear.


E das prosas brotam histórias e estórias, como as contadas pelo jornalista Leonardo Sodré, sob olhar capcioso de Dunga.


Contações de um beco-confraria; de um beco-praça; de um beco-cantão. Parágrafos de líderes livres despidos em palavras.


E quem são esses loucos? Os amantes da arte e da cultura mais genuinamente marginal. Os poetas errantes e certeiros de palavra, estrofes e sonetos. São os de vozes ecoadas dentro da redoma do beco e espalhadas aqui e ali. Vozes desejosas de gritos mais altos e outros que sequer sabem que são ouvidos. Nem fazem questão.


O Beco da Lama é beco sem vontade de avenida e de alma enlameada pelo perfume da província. Cabe ao curioso filtrar a astúcia e se adaptar à realidade daquela atmosfera.


Há um convite inconteste no ar. Quase um chamamento.


Claro, há o perigo. E não vem da sisudez de Helmut. Uma vez do beco, os contornos da cidade modificam. Aquela eterna espera por grandes novidades, herdada da Segunda Grande Guerra, quando os americanos chacoalharam a cidade, se esvai.


O amante do beco se volta às novidades dos arredores. A cena cultural da cidade ascende. O CentroHistórico despe-se do cinza e ganha cores. E a medida em que se é tragado pela alma do beco, uma sinfonia começa a tornar-se audível, vinda lá das funduras do Potengi.


É quando o curioso olha para os lados e grita: viva a liberdade! Salve o beco-boemia!

Tipos populares

Nei Leandro de Castro

Moacyr de Góes, quando saía em excursões pelos bares do Rio de Janeiro, avisava a Conceição que ia observar os tipos populares. Geralmente, Moacyr empreendia essas jornadas na companhia da grande figura de Hélio Vasconcelos, outro boêmio juramentado. Vez por outra, eu me incorporava ao grupo e via a manhã nascer no entra-e-sai pelos mil e um bares do Centro, da Lapa, do Leme, de Copacabana.

Hoje, a maioria dos boêmios de minha geração, amigos de décadas, se deita depois do Jornal Nacional, acorda às cinco da madrugada e leva uma vida de frei dominicano gripado. Com exceção de Alex Nascimento, todos já aposentaram o farrista, o notívago, o observador de tipos populares que havia neles. Alex, a honrosa exceção, tem uma conversa muito boa, cheia de brilho e safadezas – o problema são os dois cigarros e meio que ele fuma de dez em dez minutos.

Deixei de freqüentar a noite natalense, mas de vez em quando sou atraído pelos mistérios do Beco da Lama. O Beco tem muita coisa desagradável: sujeira, meladinhas cobradas a mais, donas de bar mais ferozes do que Dilma Pitbull Rousseff, travestis que se sentam no seu colo e ainda pedem dinheiro, travecos que olham para mim como se eu fosse um fenômeno. O bom é que, de vez em quando, a gente encontra uma turma boa de papo e de copo, figuras como Alex Gurgel, o múltiplo, como Fabinho, o homem que seduziu Nathália de Sousa, como a dramaturga Cláudia Magalhães, acompanhada do seu fiel escudeiro Cefas Carvalho.

Um sábado desses, surgiu no Bardallo’s – que serve a melhor omelete das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país – uma figura saída de páginas de ficção. Disse que se chamava Omar Salgado, tinha 48 anos e morava atualmente em Itaqui, Rio Grande do Sul. Nasceu em Mossoró, mas, aos 12 anos de idade, numa redação escolar, escreveu que gostava mais de Jararaca do que do prefeito Rodolfo Fernandes. Foi expulso da escola e seus pais sofreram uma perseguição tão feroz que tiveram de deixar o país onde chove balas. A família veio morar em Natal e passou muitas dificuldades até Omar completar 17 anos, quando encontrou a primeira mulher das dezenas que iriam sustentá-lo pela vida afora.

Omar, bonitão, contou detalhes sobre as mulheres que o sustentaram, sem esconder detalhes, mesmo os íntimos, os de cama. Confessou que a viúva gaúcha que o sustenta em Itaqui completou 68 anos, mas tem um corpinho de 65. Já foram à Europa, Ásia e Oceania, tudo por conta da bela herança que ela recebeu do falecido, um político corrupto. “Desculpem a redundância” – diz Omar Salgado, e bebe uma dose inteira do melhor uísque vendido no Bardallo’s.

O poeta Volonté, calado até então, disse: “Omar Salgado, Omar Salgado, o seu nome me lembra um poema de Fernando Pessoa.” Omar disse: “Tem razão, você é esperto.” E recitou: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal.” Omar Salgado era pseudônimo. Seu verdadeiro nome era Ricarjul, composto por Ricardo e Júlia, pais de muito mau gosto, ele comenta.

Omar vê passar pela rua uma mulher de uns 60 anos, bem-vestida, cheia de jóias. Ele paga a conta de todos e sai atrás de mais uma fonte de boa remuneração.

Lembranças do Grande Ponto

Moacyr de Góes

Infância e adolescência foram por mim vividas no primeiro quarteirão a partir do Grande Ponto em direção ao baldo, na margem direita da Avenida Rio Branco. Mais precisamente: a casa de meu pai era separada do Cinema Rex pela casa de José Lucena, pai de Wellington, meu amigo. Assim, pode-se dizer, eu morava no Grande Ponto.
Esse tempo começou depois do levante comunista de 35 e, quando Getúlio Vargas morreu, em 1954, eu ainda estava lá.
Esse longo tempo é um largo espaço de calmaria e de um cotidiano em geral anódino, mesmo porque infância e adolescência só são valorados pelos crivos de lembranças da maturidade e da velhice. Mesmo assim, trago lembranças de vida que estão ligadas ao Grande Ponto.
O que era o Grande Ponto? Diz Cascudo1 que o nome vem de uma casa comercial de duas portas para a Rio Branco, três para a Pedro Soares (hoje, João Pessoa). Mercearia, sinuca e bar onde se tomava cerveja nos anos 20, de propriedade do português Custódio de Almeida. Depois, nome de esquina, encontro de linhas de bondes que vinham da Ribeira e do Alecrim, do Tirol e de Petrópolis. Mesmo quando a casa comercial já não existia mais, persistiu o nome Grande Ponto para definir o lugar, situação geográfica mais popular da cidade (...) presença e continuação - como ensina Cascudo. Para mim, o Grande Ponto é o espaço-tempo emocional onde eu descobri o mundo. E para mim o mundo começava em Natal, como para Cícero Dias começava no Recife.
Hoje, paro. Reflito. Anoto mais ou menos uma dúzia de momentos em que minha vida passou, significativamente, pelo Grande Ponto. Lembro.
1. A primeira lembrança está ligada ao Brasil na Segunda Guerra Mundial. Pela porta da casa de meu pai desfilou uma passeata de estudantes e populares recolhendo alumínio para o esforço de guerra. No Grande Ponto, numa clareira entre os trilhos dos bondes, estava erguida uma pirâmide de doações. Apanhei na dispensa uma chaleira e fui colocá-la na pirâmide. Ao chegar em casa, minha mãe reprovou meu gesto pois a chaleira era nova e deveria substituir a usada que, no fogão, já apresentava furos. Foi assim que, aos dez anos de idade, participei da guerra contra o nazi-fascismo - com uma chaleira.
2. A segunda lembrança é o som da mesma guerra. Eu explico. A rota Natal-Dakar colocava a cidade sob a ameaça de um possível ataque aéreo alemão. A defesa civil, então, treinava a população para deixar os bairros sob severo blecaute. O anúncio do início e do fim desse treinamento era feito através de estridente sirene que poderia tocar a qualquer hora. Entre a minha casa e o Grande Ponto, na margem esquerda da Rio Branco, ficava uma grande caixa d’água que abastecia toda a Cidade Alta. Eu sempre atribuí a localização da sirene na caixa d’água - e nunca soube, depois, se era verdade ou não. Mas o Grande Ponto, quando da guerra, me chegava também por esse som.
3. A terceira lembrança é a de um Grande Ponto que não houve. Eu conto. Do Grande Ponto para o Baldo, no terceiro quarteirão da margem esquerda da Rio Branco, ainda no tempo da Guerra, morava N., minha primeira namorada. Nunca conversamos, mas sabíamos, pelos olhares, que estávamos namorando. Uma tarde, ela passa pela minha casa e deixa um bilhete dizendo que ia me esperar no Grande Ponto. Este bilhete nunca chegou às minhas mãos e só muitos anos depois é que ela me contou essa história. Minha mãe, indormida e guardiã de minha infância, interceptou o bilhete e nunca me disse nada. Assim, foi o Grande Ponto que não houve, ou, mais ou menos, como o verso de Bandeira: a vida que poderia ter sido e que não foi.
4. A quarta lembrança do Grande Ponto me vem por um outro sentido: o paladar. Do Grande Ponto pela Rua João Pessoa, o primeiro e o segundo quarteirões são separados por esquinas de sabores inesquecíveis: o primeiro sorvete na Polar, a salada de frutas da sorveteria Cruzeiro (da qual falarei adiante) e, bem mais tarde, a primeira cerveja no Botijinha, este um misterioso bar que não tinha portas pois virava dia e noite.
5. A quinta lembrança me leva ao Natal Clube, que fazia esquina no Grande Ponto. Na cobertura, que era um amplo espaço em toda a dimensão do prédio, foi realizado um ato público em defesa da Campanha do Petróleo é Nosso. Lá, fiz meu primeiro discurso em praça pública, representando o Colégio Marista. O comício, cercado pela polícia, foi considerado subversivo. Lembro que foi nessa data que conheci o professor Luiz Maranhão.
6. A sexta lembrança me remete à sorveteria Cruzeiro, já referida. O evento é a exposição de pintura de meu primo Newton Navarro que levou o nome de um verso de Drummond: Sejamos pornográficos, docemente pornográficos. A exposição tinha como mote principal a provocação à burguesia natalense. E essa meta foi alcançada, com louvor. Pauladas conservadoras vieram de todos os cantos. A essa altura, já com fumacinhas intelectuais, eu me metia em organizações de grêmios estudantis, como a Academia Histórico Cultural, que se reunia no Instituto de Música, esquina de Rio Branco com General Osório, também no Grande Ponto.
7. Ficamos ainda na sorveteria Cruzeiro, nesta sétima lembrança. O local, aliás, é apenas um contraponto. A história mesma se passava numa casa da rua Felipe Camarão. Foi o tempo de meu longo e feliz namoro e noivado de oito anos. Então, Sinval Lopes Pinheiro namorava Branca e eu namorava Nenen (Conceição). Às noites, João Ururahy, com seus elegantes cigarros americanos, comparecia para conversar com Mailde sobre literatura e política. Às dez horas, minha futura sogra, Dona Chiquinela, nos colocava para fora, pois aquela era uma casa de família. Aonde íamos continuar o papo? Na sorveteria Cruzeiro, até o fechamento. E haja assunto!
8. O Grande Ponto funcionava em dois expedientes: um, antes do jantar, outro, à noite. As rodas formadas eram sempre de homens. Mulher que, assiduamente, freqüentava o lugar, no meu tempo, eu lembro de Nenen Pacheco, acompanhando o marido, José, e discutindo política - afinal ela era filha de Amaro Magalhães, um dos grandes líderes cafeístas da primeira metade do século 20, em Natal. Mesmo arriscando a injustiça das omissões, lá vão alguns nomes representativos do espírito do Grande Ponto: Djalma Maranhão, João Machado, José Alexandre Garcia, Leonardo Bezerra, Loril, João Ururahy, Pedro Coelho, Paulo Bittencourt, Luís Gonzaga (algumas vezes acompanhado da mulher, Lourdinha), Milton Siqueira, Boanerges Soares, Afonso Laurentino Ramos, Newton Navarro, Albimar Marinho, Ubirajara Macedo, Rivaldo Pinheiro, Aluízio Barros, Meira Pires, Eudes Moura, Alvamar Furtado, Deus (Ivanildo, filho do professor Saturnino), Abel Viana, Liliu, e tantos outros. Depois vieram novas gerações: Hélio Vasconcelos, Paulo Oliveira, Márcio Marinho, Omar Pimenta, Danilo Bessa, Brígido Ferreira, os irmãos Siminéia, Meira e Chico Lima, e foi pouco depois desse tempo que Geniberto Campos e Borginho foram aos murros por causa de discussão política.
Numa linguagem de hoje, diríamos que muitas eram as tribos e galeras. Havia também as rodas dos desportistas que discutiam remo e futebol. Nos tempos de campanha eleitoral, assinava o ponto por lá a conhecida Maria Mula Manca, destemida cabo eleitoral de Dinarte Mariz e o também conhecido estudante apelidado de Pecado, um agente duplo infiltrado pela polícia nas hostes das esquerdas. E todas as tardes, o Grande Ponto ouvia o grito de guerra do negro Cambraia, o jornaleiro mais importante de Natal, que vendendo a Folha da Tarde celebrava o milagre da sobrevivência de um jornal que não tinha um tostão em caixa.
O Café São Luiz e a Confeitaria Cisne tinham público cativos. O Natal Clube orgulhava-se de seu grupo de carteado, no qual o Deputado Djalma Marinho era figura de responsa.
Às vezes, pela manhã, na Ribeira, na esquina de Tavares de Lyra com Dr. Barata (a esquina do mundo, como chamava Djalma Maranhão), o mentiroso soltava um boato que lhe era contado à noite no Grande Ponto. E ainda com reservas de segredo. No tempo da guerra, em Natal, a notícia para ser verídica precisava ser confirmada pelo Rádio da Marinha...
9. Grandes eventos de Natal, curiosamente, evitavam o Grande Ponto como ponto fixo. Passavam pela esquina, ocupando a Rio Branco. Era o caso da Igreja e sua grande Procissão do Encontro, na Semana Santa. As imagens do Senhor dos Passos e da Virgem Maria, percorrendo caminhos diferentes, se encontravam na Praça Sete. Aí, quando o sermão era feito pelo Cônego Luís Wanderley, muita gente chorava.
O corso carnavalesco era feito na Rio Branco e depois na Deodoro, isto é, passando pela margem do Grande Ponto. O mesmo quando dos ciclos junino e natalino: a Prefeitura armava o palanque para os autos populares e folclóricos na esquina de Rio Branco com Ulisses Caldas. A primeira Praça de Cultura de Natal foi celebrada na esquina, mas, armada do outro lado, nas vizinhanças do cinema Nordeste.
10. Foi no Grande Ponto, em 1952, que eu conheci Djalma Maranhão. Ele era candidato a deputado estadual e precisava ganhar espaço no movimento estudantil. Seu aliciamento foi claro e direto. Me disse:
- Em Natal, todos os estudantes são do PSD ou da UDN, influenciados pelos pais. Tudo pequeno burguês! Convido você para vir para o cafeísmo. Café Filho tem passado de defesa da classe operária, uma história.
Aí deu-se o meu salto qualitativo do movimento estudantil para a política partidária. Daí em diante, meu caminho político foi feito junto a Djalma Maranhão: pelos partidos políticos (PSP, PTN, PSB), no jornalismo (Jornal de Natal e Folha da Tarde), nas campanhas políticas (deputado estadual, deputado federal, senador, prefeito), por duas vezes na prefeitura de Natal (Chefe de Gabinete e Secretário de Educação), nos cárceres da reação, como gosta de dizer o meu amigo Eurico Reis e, finalmente, na diáspora potiguar de 1964. Esta minha prática política nasceu no Grande Ponto, em 1952.
11. Em 1958, um forte cabo de aço suspenso no Grande Ponto atravessava a Rua João Pessoa, em frente à Confeitaria Cisne, sustentando letras recortadas em folha inteira de madeira compensada, articuladas separadamente. Ao vento, cada letra se movia com uma bela elegância. Lia-se: MARANHÃO PARA FEDERAL. Isso deve ter sido coisa de José Ribamar. Essa publicidade eleitoral trouxe um forte impacto na divulgação da candidatura de Djalma Maranhão à Câmara Federal. Lembro dele, de camisa arregaçada, em baixo daquelas letras, rindo como um menino que tivesse ganho um presente novo.
Passados tantos anos, recordando o episódio, faço uma releitura simbólica. Ele que fora chamado de Prefeito do Subúrbio, na tentativa dos conservadores de desqualificá-lo, chegava agora ao centro da cidade e chantava seus brasões como novo navegante. Tomava posse de seu chão de casa. E o Grande Ponto, como coração da cidade, aceitava-o como um dos seus. Isso ficou evidente, dois anos depois, em 1960, quando a cidade o elegeu prefeito com 64% dos votos válidos. Nos três anos e seis meses seguintes, Natal viveria uma democracia participativa, coisa que só ganharia esse conceito nas administrações do PT, após a Constituição de 1988.
Em 1962-63 fundou-se, no Grande Ponto, num velho sobrado em frente à Confeitaria Cisne, o Fórum de Debates Djalma Maranhão. Foi outra tomada de posse de seu chão de casa. Outra visão profética de uma administração que precisaria ser construída com o povo. Ali, a democracia participativa criava raízes pois a discussão era permanente sobre as grandes questões nacionais e da cidade.
Foi lá onde foi celebrado o I Congresso Nacional de Educação e Cultura Popular, com a presença significativa de grandes intelectuais brasileiros. Lembro que na sessão de encerramento havia tanta gente que o velho sobrado rangia e ameaçava desabar. Temendo o pior, Djalma Maranhão se socorreu de Marcelo Fernandes para que ele desse um jeito de desocupar o local. Valendo-se de sua criatividade de diretor de teatro, Marcelo tomou de uma bandeira nacional e gritou: "Quem for brasileiro, siga-me!" Repetindo o brado abriu caminho pela escada entupida de gente e conseguiu transferir para o meio da rua João Pessoa o encerramento do Congresso.
12. Certamente muito pouca gente ainda se lembra do dia em que o Grande Ponto falou para o mundo (e isso nada tem a ver com a Rádio Jornal do Commercio, do Recife). Foi no dia 5 de maio de 1963. Eu conto. À noite, o embaixador americano Lincoln Gordon era recebido pelo governador Aluízio Alves no Palácio do governo com um banquete e lá assinaria o protocolo de posse das novas terras compradas pela Aliança para o Progresso. Em resposta, o prefeito Djalma Maranhão foi para o Grande Ponto à frente de 40 mil pessoas (o que era 1/4 da população de Natal) e, com as bandeiras da soberania nacional fazia a denúncia e o protesto. Convidado, Brizola compareceu e com ele a irradiação do comício pela Rádio Mayrink Veiga e transmissão em cadeia com mais de cem emissoras de rádio espalhadas por todo o país. Foi assim que o Grande Ponto falou para o mundo.
Aliás, o que muita gente se lembra, é que no meio da maior vibração nacionalista e de esquerda, Brizola, que denunciava a conspiração do golpe de direita (que, efetivamente ocorreria antes de um ano, em 1964), resolveu chamar o general Muricy, comandante da guarnição de Natal, de gorila e de fujão. Isso também o Grande Ponto falou para o mundo. Aí nos caiu o céu na cabeça, como temia Abracurcix, ínclito chefe de Asterix, Obelix e outros gauleses ilustres nas suas lutas contra os romanos e normandos. O corporativismo militar uniu todas as patentes e, então foi mais fácil conspirar contra o governo legítimo do presidente Jango.
O Grande Ponto falara para o mundo, mas nada é perfeito. Já dizia a Raposa ao Pequeno Príncipe.

Rio de Janeiro, 8 de outubro de 2002

Era uma vez um homem

Clara de Góes

Era uma vez um homem. Era uma vez o frio. Era uma vez um homem que tinha frio. Não. Era uma vez um homem que tinha medo de ter frio. Era uma vez um homem que sabia que tinha frio mas que não era ainda. Havia uma brecha.... uma brecha no tempo, uma espécie de defasagem... de tempo... no homem, no clima, na geografia. O frio viera antes das condições atmosféricas de temperatura e pressão. E ele sabia... sabia do frio. Do frio antes do tempo que começava nele... nos ossos dele. E o homem que era grande, o corpo coberto por abundantes camadas de gordura; o homem que era como um leão marinho, desses de livro, que se espreguiçam em icebergs como se fossem dunas... tinha frio. E o que pedia (ou perdia) o homem que tinha frio, que tinha medo de ter frio, e que sabia do frio que não era ainda? Casacos? Capotes? Couro? Lã? Não. Ele pedia um par de meias.

A família decidira. Era preciso mandar a encomenda. Atender aquele último pedido... um par de meias... um contato ainda depois da prisão e antes do exílio. Mas como? As embaixadas estavam vigiadas, quem entrava ficava marcado... Mas era preciso, um par de meias... E ele lá. Na embaixada do Uruguai, à espera de um par de meias. Alguém teve a idéia, uma visita. A visita da afilhada. É criança, o risco é menor. Ela vai, leva o par de meias, toma a bênção... mais uma vez. Quem sabe... isso não se sabia. Não se sabia mas se temia e ninguém dizia e foi mesmo, a última vez.

Decidiu-se. Ia a menina. Natural, que fosse ver o padrinho, se despedir.

A menina tinha oito anos, era franzina e já aprendera o frio. Carregava-o no bucho, nos ombros, no olhar... Ela não sabia, mas sentia. Ele sabia e antecipava. E eu fui. Ela que, naquele tempo, era eu, foi.

Ver o padrinho, o prefeito, levar-lhe um par de meias. Levar os recados, as recomendações de todos, se lembrar, não esquecer, trazer de volta, aos seus, um gesto dele, habitual... o jeito de coçar o queixo (mais a papada do que o queixo) com as costas dos dedos, um olhar... alguma coisa do homem imenso como um leão marinho que se espreguiçava em dunas... as dunas de Natal.

E era tanta coisa que ela devia levar e não se esquecer de lhe dizer, e não chorar, e lhe dar coragem, e tanta coisa e tão pequenos eram os ombrinhos dela, que ela se esqueceu de quase tudo. Esqueceu-se de olhar pra ele, de ter coragem, de dizer... do medo, do medo de ter medo, do medo de esquecer (quando esquecer era um jeito de trair), e ela chegou lá e fixou-se nas mãos. Alguma coisa a impedia de olhar nos olhos dele. Tinha medo do que podia ver, adivinhar, intuir, de ver fraqueza nele... nela. Então se fixou nas mãos. Prendeu-se nelas. Eram grandes e tombavam sobre os joelhos que eram largos. Ele estava de cabeça baixa, talvez porque ela fosse pequena e esse fosse o jeito de olhar pra ela, talvez por lhe pesarem os pensamentos, talvez de cansaço...

Ela acompanhou-o no gesto, no modo, na inclinação da cabeça, na vida que escorria pela brecha entre a geografia e a história daquele instante que seria o último, o último encontro de um leão marinho naufragado e uma menina cuja infância não veria o mar.

Nas mãos dele, a mãozinha dela tantas vezes se abrigara, se perdera, se encontrara. Nos comícios. Nas festas de São João. Nos palanques, nas danças, num gosto de povo com cheiro de intimidade que ele lhe deixara. “Meu padrinho”, ou, apenas, “padrinho”... era como um nome mágico, uma espécie de “Abre-te Sésamo” diante da vida, da cidade, da alegria... as bandeirinhas de São João, os acampamentos, e eu me sentindo tão importante, entregando prêmios, percorrendo as Rocas, “Brasília Teimosa”, as lavanderias do Alecrim... o Baldo... Esse povo pobre não deixa Djalma em paz, dizia minha avó. Esse povo pobre... e Djalma... no olho no furacão.

Um dia foi como se não fosse... a vida de perna pro ar, o mundo de ponta a cabeça... os soldados... as casas invadidas, as vidas reviradas, as prisões... o cheiro do medo, a valentia de uns a covardia de outros, a prova da vida e da dignidade nas costas. O povo pobre se findando, o mundo ficando de longe...

Djalma foi firme. Assumiu a responsabilidade por tudo... Seu padrinho foi preso... Djalma está incomunicável. Em Recife, a tortura come solta, o pau tá comendo. Tão sumindo com os camponeses. A tortura começou, vão mandar especialistas de Recife pra Natal... Um certo capitão Lacerda... Djalma está incomunicável. As visitas ao meu pai, o cheiro de mijo dos quartéis, a revista, o medo... menos que medo, espanto. Raiva difusa... solidão.

Djalma foi pra Fernando de Noronha. Botaram Luís Gonzaga num avião. É mesmo pra matar, o homem sofre do coração, dizia minha avó que procurava na rua com quem brigar. Meu avô chegou, o velho coronel viu a filha sair presa de casa. O velho coronel que não podia com o sargento... um sargento e um cabo levaram minha filha... Mailde foi presa! O velho não agüentou, morreu depois. Djalma está melhor... parece que tem banho de sol na ilha... outros estão chegando. Mas ele sabe, sabe... que vai demorar...

Depois... Djalma na embaixada rumo ao exílio no Uruguai. E as notícias que chegavam. Djalma não agüenta o exílio. Não se adapta de jeito nenhum. Só fala em Natal. Pede mangabas... a fruta das dunas... o meu leão marinho... Tem saudade do sol, da brisa, do Grande Ponto.
Djalma tem uma banca de jornal... vende jornais do Brasil... mas está cada vez mais calado. Só fala em Natal... quer voltar...

As frases ecoavam na casa, na família que se virava como podia em um exílio diferente mas ainda assim... exílio. As frases ecoavam em meu pai que se identificava com o amigo na saudade e no amor à cidade de Natal. As frases ecoavam na raiva incontida de minha mãe que amaldiçoava a cidade que ficara pra trás. A raiva dela e a nostalgia dele... e o meu silêncio... o desamparo. A lembrança dele começou a servir de corpo a outras saudades... Meu leão marinho era como Moby Dick, carregando em suas costas os naufrágios dos outros... cada um que sucumbia, aumentava a carga dele.

Minha mãe era um poço de raiva, meu pai de saudades... e na menina, que agora sabia do frio e entendia o desamparo das mãos dele sobre os joelhos largos. Tinha agora mais tempo de lembrança do que de vida vivida ao lado dele. Mas os naufrágios aumentavam e a lembrança dele crescia e de alguma forma o corpo imenso dele, carregava aquilo tudo. Assim, a presença dele crescia. Presença de silêncio entrecortada de notícias que não passavam de frases curtas, como que a escapar de nossos ouvidos, de nosso entendimento.

E ela pensava nele, no padrinho. Um dia, chegou um presente. Uma pequena bolsa de couro... que, se dizia, “de antílope!” , com solene importância. Aquilo causou espanto. Como é que num tempo daquele se cometia uma delicadeza daquelas! Com tanto sofrimento, tanta tristeza, tanto abandono e brutalidade... uma delicadeza daquelas... uma bolsinha de couro de Antílope para uma menina, uma afilhada entre tantas que o ex-prefeito devia ter... Mas era a filha do amigo... Clarinha...

E se repetia “De antílope”... E aquilo era pronunciado com solenidade: “de antílope!” como se fosse um nome próprio. E a menina correu à enciclopédia, ao dicionário à procura de antílopes... o que seria aquela palavra tão pomposa e importante... não tinha coragem de perguntar... A bolsa era pequena e macia. Foi guardada como se fora uma relíquia... e, de certa forma, era. O presente do padrinho que se reduzia, cada vez mais, a mãos desamparadas sobre os joelhos largos. Silêncio. E o enigma: ele pensava em mim? Devia pensar, pra mandar um presente... Eu tinha, então, uma existência além dos horizontes dessa língua, na qual, não mais me reconhecia? Aquele homem grande pensava na menina franzina , na afilhada, e lhe mandava, em silêncio, um presente.

Depois veio a notícia. O coração de Djalma não pôde mais. Sucumbiu. E meu pai repetia. Morreu só. Morreu só. E minha mãe respondia com a crueza de um desespero que ela mal podia reconhecer: “como sempre viveu”. Morreu como sempre viveu. Como um destino. Uma sina. Como se sempre... Mas... mas tinha o povo pobre... Esse povo pobre que não deixava Djalma em paz... teria, ele, o reconhecido por lá? A solidão dos homens... A febre no olhar....o choro de fome das crianças enlouquecendo as mães... o ventre das adolescentes vendidas nas estradas... Não se sabe.... Não se pôde perguntar... E ele não pôde dizer. Meu pai rezava e minha mãe calava a raiva surda no peito. Não chorava. Calava. Eu corri ao meu presente que vivia envolto no papel de seda em que chegara.

Desembrulhei-o e fiquei segurando minha pequena bolsa de antílope, como se fosse um nome próprio que eu recuperasse como uma herança... mas não tinha existência, a sua morte. Continuava, do mesmo jeito a presença dele... nas coisas, na lembrança de uma vida que ficara entre as bandeirinhas de São João. Não lhe era permitido morrer porque sua vida não tinha sido vivida até o fim. Tinha uma brecha... E o corpo dele não passava por ali... Não tinha jeito dele ir. O meu leão marinho que se espreguiçava nas dunas de Natal continuava. Eu o levava, mesmo assim... pequena e franzina, jogando em seu corpo branco os começos abortados de minha jovem vida... ele não cabia na brecha que a morte abria... não era um problema de alma, mas de corpo... portanto continuava vivo. Tinha que continuar!

E mesmo as notícias do enterro, as últimas humilhações... “não deixaram isso”, “não deixaram aquilo”; frases de sujeito indeterminado que indicavam o anonimato covarde das ordens que perpetuavam a injustiça, a mesquinharia, a ruindade comezinha das gentes... e o meu padrinho tão grande... imenso. Imenso e frágil... “o coração de Djalma não pôde mais”. É. Não pôde mais.

Agora vira ele praça e ponto de encontro, o Grande Ponto de que ele gostava e que era referência na cidade. É tempo de alegria e, quem sabe, tempo de reconciliação. Diria meu pai, em sua fé, o tempo do perdão. O Grande Ponto... Djalma Maranhão. Não sinto alegria. Procuro, em mim, sentimentos cristãos e não os encontro. É a herança que me cabe, a herança que reivindico e da qual não abro mão. Herança que não precisa de consangüinidade nem testamento escrito. Ela me foi mandada, em silêncio, numa bolsinha de antílope, do Uruguai.

Minha herança não é de família nem de partido, é herança de um destino partilhado... o destino do frio. Procuro, em mim, alegria ou sentimento triunfante de justiça finalmente feita e não encontro nada disso. Não vejo, em mim, a generosidade que, segundo dizem, ele tinha. Há o vazio dos que não voltaram. Dos corações que não puderam mais. Certas coisas não têm perdão nem volta. Minha herança, e não é fácil carregá-la, é dizer que eu não me esqueci. Que eu não perdoei. Que me doem ainda as frases e o tempo que me foi roubado, a convivência que me foi impossível... O destino abortado de uma geração não tem volta nem tem como apagar. O tempo não se recupera. E alguns não voltaram. Alguns não voltaram. E isso é imperdoável.

Sim, há o registro simbólico, o reconhecimento, o testemunho às gerações. Não me interessa. Seu corpo, de certa forma se transubstancia em praça pública e, finalmente, ele é entregue inteiramente à cidade cuja ausência o fez morrer. Inscrevem-no espaço público que era o que ele preferia. Para mim, não importa. O que me foi negado permanece... nada nem ninguém podem restituir

Não sei aonde foi parar depois de tantas mudanças e exílios, voluntários e involuntários, minha bolsinha de antílope. Carrego, no entanto, o peso das mãos desamparadas, dos pés nos chinelos, da cabeça baixa... do medo de cair no choro se o olhasse nos olhos, de vê-lo triste... o meu leão marinho arrastando pra longe a imensa carcaça que o coração não pôde suportar... mais.

Rio, 9 de novembro de 2002

O impeachment do prefeito

Mailde Pinto Galvão

No dia 3 de abril, o "Diário de Natal" divulgou as prisões efetuadas, noticiando a decretação do impeachment pela Câmara Municipal. Dizia a notícia:

"Às 17 horas, patrulhas do exército comandadas por oficiais, simultaneamente prenderam nos respectivos gabinetes, na Prefeitura e na Câmara Municipal, o prefeito Djalma Maranhão e o vice-prefeito Luís Gonzaga dos Santos, conduzidos, inicialmente, para o QG da Guarnição, praça André de Albuquerque. Foram recolhidos ao 16º RI, onde permanecem. Logo depois, o comando militar informava à Câmara que, sendo o prefeito e vice-prefeito comunistas, estavam impedidos de exercer os seus mandatos.
Diante dos fatos, a Mesa da Câmara solicitou do comando militar que a comunicação fosse feita por ofício, permanecendo o legislativo reunido. Já por volta das 22 horas, chegou à Câmara o ofício do coronel Mendonça Lima, nos termos da comunicação verbal anterior. Em seguida, ainda secretamente, decidiu a Câmara aceitar a denúncia do comando militar, iniciando um processo de impeachment ao mesmo tempo em que, conforme determinação do Exército, considerava vagos os dois cargos."

O mesmo jornal publicou o texto da declaração do impeachment:

"Texto da Declaração do Impeachment
É o seguinte o inteiro teor da declaração firmada pelos 21 vereadores da Câmara Municipal de Natal, em que declaram o impeachment do prefeito Djalma Maranhão e vice-prefeito Luís Gonzaga dos Santos:
`Declaramos que votamos o impeachment do prefeito e vice-prefeito por estarmos certos de que estamos defendendo a Democracia, que se define na liberdade de pensamento individual.
Tomamos tal atitude por não estarmos coagidos por ninguém e reconhecermos a plena vigência da Democracia.`
O texto da declaração, após vários debates, foi proposto pelo vereador José Godeiro, sendo aceito pela unanimidade dos edis."

O então presidente da Câmara Municipal, vereador Raimundo Elpídio, assumiu, interinamente, o cargo de prefeito.
Assim, por uma simples ordem militar, foram cassados os mandatos do primeiro prefeito e vice eleitos pelo voto popular na cidade de Natal.
Para nós, restou a sensação de que a vida fora interrompida para ser retomada entre ameaças, perdas e insegurança. A partir daquela tarde, amigos e companheiros sumiam e apareciam nas prisões. Alguns conseguiam fugir, mas apenas retardavam o momento de serem levados presos para os quartéis.
A cidade dividia-se entre vitoriosos e derrotados, entre os democratas silenciosos e os entusiastas do novo regime que eram massificados pelas promessas de redenção política e econômica para o país.
No dia 6 de abril, o "Diário de Natal" notificou a eleição, pela Câmara Municipal, do novo prefeito de Natal, almirante Tertius Cesar Pires de Lima Rebelo e do vice-prefeito, vereador Raimundo Elpídio, que já ocupava a Prefeitura. Salientava que o ato da eleição pelos vinte e um vereadores durou pouco mais de sete minutos.

In 1964. Aconteceu em abril, Mailde Pinto Galvão
Editora Clima. Natal/RN, 1994.

sábado, 17 de outubro de 2009

A velha Confeitaria Cisne

Protásio Melo

Ficava quase no final da rua João Pessoa, 162, junto ao prédio da loja Nações Unidas, esquina com a Rio Branco. Aquele local era ponto de destaque da cidade. Na década de 30, foi o Café Avenida onde a rapaziada elegante se reunia de paletó e gravata e, algumas vezes, até de bengala, para tomar café. Os jovens bebiam menos nesse tempo. Iam, ali, mais para passar o tempo, contar suas conquistas ou ‘‘bodagens’’ e, como não podia deixar de ser num grupamento humano civilizado, ‘‘sentar a pua’’ em quem prevaricava. A cidade era pequena. Sabia-se de tudo e se conhecia todo mundo.
Depois veio a Grande Ponte, de Andrade, que também exerceu papel importante na vida da Natal em desenvolvimento. O Grande Ponto viu alegria, cachaçada, brigas de Milton Siqueira, perseguição política, esculhambação de estudantes, prisões, enfim, um aglomerado à altura de uma cidade que se modernizava.
Vestia-se camisa esporte, ‘‘silek’’, que os americanos introduziram nos costumes. Os assuntos eram outros, já se viajava para fora de Natal para conhecer um Brasil maior, os filhinhos de papai - os mauricinhos - arrumados à última moda e dirigindo carros modernos, para olhar o ‘‘footing’’ de tarde, descendo a João Pessoa ou subindo a Rio Branco, que alguns ainda chamavam de rua Nova.
E se passaram os tempos, as condições de vida acabaram com o velho Grande Ponto, e a Loja Nações Unidas abre elegante estabelecimento na esquina. Mas ficara a grande falha. Não havia mais um lugar para sentar, conversar, beber ou comentar a vida alheia. É quando aparecem os irmãos Rossini, Múcio e Aldemar Miranda, inaugurando a Confeitaria Cisne, no nº 162, local bonito, elegante e moderno, onde era explorado o ramo de Confeitaria na parte da frente, e, ao fundo, imenso serviço de bar, onde imperava o famoso garçom Zé Américo, homem que sabia tudo.
A Cisne teve vida longa, funcionando por quase 25 anos, servindo à cidade e seu povo exigente, numa Natal adulta, aos americanos que chegavam.
Os irmãos Miranda eram simpáticos, atenciosos e amáveis, porém Rossini, por ser o mais extrovertido, era a figura principal. Delicado, simpático, paciente, de grande amabilidade e cara bonita, até quando ‘‘penduravam’’ uma despesa. Nunca o vi de cara feia, facilitando em tudo a vida da freguesia. Havia de tudo na Cisne, e bebia-se de tudo. Os ricos pediam whisky estrangeiro e a população média tomava rum, conhaque, cachaça. Mas a preferência era pela cerveja. Existiam os cervejeiros especiais também. Vi Xico Lamas, certa vez, apostar e ganhar, adivinhando três copos, com cerveja de três marcas diferentes: casco verde, casco marrom e casco preto.

Bozó

Havia os fregueses solitários, como o comerciante Omar Furtado, que vinha todo dia, às 10h da manhã, tomava duas cervejas e ia embora. Pela manhã, entre os jogadores de bozó de cinco dados, era uma alegria presenciar uma partida do professor William Aires, o célebre professor de matemática do Atheneu. Literatos, médicos, advogados e militares graduados também freqüentavam a Cisne. De manhã, podia se encontrar ali Cascudo, Amaro Mesquita, General Leitão, Zé Aguinaldo, Pelusio Melo, Veríssimo Melo, João Medeiros Filho, sempre contando suas aventuras, João Machado Gordo, José Melquíades, membros da Federação de Futebol e outras entidades esportivas.
E a turma mais jovem, aprendendo o caminho, também passou a freqüentar a Cisne. Era um movimento muito grande pela manhã, de tarde e de noite. Havia fregueses para todas as horas, assim como os ‘‘especiais’’. O Rei Momo, Wilson Maux, grande cervejeiro, Luizinho Doublecheck, Clóvis Guerreiro e muitos outros dos bares vizinhos, como a Baiúca e o Pk Bar, de Rui Praieiro, que vinham mudar de ambiente.
Certo dia, entrei no bar e, sozinho numa mesa, estava um rapaz moreno e simpático tomando uma cerveja. Olhou para mim e, de dedo em riste, perguntou: ‘‘Você é que é Protásio Melo? Respondi que sim, e ele continuou: ‘‘Você escreveu um poema na Revista ‘‘Bando’’: Perdi no meu sonho a estrela da tarde, não foi? Respondi que sim, e ele disse: ‘‘Diga a Manoel Rodrigues que mude o nome de ‘‘Bando’’, que sugere cangaceiro, morte, sangue. Um poema bonito e lírico como o seu não devia estar ali’’. Então, perguntei: ‘‘quem é você’’? Disse: José Gonçalves de Medeiros.
Estava diante do poeta mais badalado do Rio Grande do Norte a elogiar um poema de minha autoria. Na Cisne, se tramavam coisas e até golpes políticos. Os estudantes do Atheneu também iam ao bar. Mas como dinheiro de estudante é minguado, demoravam pouco tempo. Vi muito por lá o estudante apelidado de ‘‘Pecado’’, Danilo Bessa, Berilo Wanderley, Pompeu, Claudionor Filho. Militares graduados de várias estrelas tomando discretamente whisky.
E corre o tempo, a Cisne prospera, aumenta a freguesia e começa a fazer parte da fisionomia de Natal. Do lado de fora, formavam-se rodinhas: médicos, advogados, jogadores de futebol, desportistas, bicheiros, vagabundos de toda espécie, pedintes.
A Cisne dos Miranda tornou-se um marco na cidade de Natal.

Geografia sentimental do Grande Ponto

José Maria Guilherme

Apesar de tudo, fui feliz na minha juventude. Tive amigos que, como eu, sonhavam com um mundo melhor transbordando de paz, cheio de crianças nas escolas; barriguinhas cheias; saúde de ferro; correndo atrás das pipas, das bolas nas peladas; roubando as mangas, doces de “ripunar”, do sítio do “Dr. Choque”; pegando “morcego” nos bondes (o bonde nove era o pior, tinha o estribo muito alto); fazendo “pendura” na Sorveteria Cruzeiro. Celso, um dos garçons, era o único a entender nossa gula, nossa pobreza, e aceitava nossos “fiados”. Se morreu, deve estar distribuindo sorvetes aos querubins.
Sorveteria Glacial, de Aparício Menezes, esquina das ruas João Pessoa (antiga Visconde de Inhomerim, outrora Cel. Pedro Soares, primeiro proprietário do palacete construído na esquina da avenida Deodoro com a citada João Pessoa, onde hoje vemos o Edifício Cidade do Natal), e Princesa Isabel, antiga 13 de Maio, e antes Rua dos Tocos, onde, toda Quarta-feira, estudante gozava de um abatimento de 50% em cada taça de sorvete.
Atrás da Glacial, Jaecy, o fotógrafo poeta, instalara seu primeiro studio, onde eu ia escutar músicas da melhor qualidade e admirar as fotos-paisagens de Natal, todos os dias após as aulas do 7 de Setembro. Os filmes seriados e; os de Tarzan; Mandrake, o Mágico; Flash Gordon; Os Irmãos Corsos; Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, este , “religiosamente”, na Semana Santa. Tinha gente que começava a chorar já na bilheteria. Gunga Din; os famosos cowboys; Jim das Selvas; A Marca do Zorro; O Príncipe Submarino.
O Cine Rex abrigava casais de namorados que, terminado o filme, nem sabiam seu nome – os beijos não deixavam. Dorothy Lamour, vestida de havaiana, cantando à beira de um lago: “luar e sombras, você junto a mim...” E eu suspirava na platéia. Era minha namorada, sabiam? Muitas vezes, levei-a ao banheiro da minha casa...
Eu marcava o encontro com a namorada já dentro do cinema, ao pé daquelas duas escadas que levavam ao plano superior, o “balcão”. Primeiro, porque o dinheiro mal dava para pagar a minha “entrada”; segundo, porque, ali, o escurinho era mais escuro e servia de manto sob o qual nos isolávamos do mundo e dos olhares curiosos. Quando o filme “quebrava” e a luz acendia, flagravam-se muitos pombinhos em pleno vôo.
Cinema Rex, do velho Xixico, ainda hoje o espaço físico que ocupaste na geografia da cidade-menina está vivo como nunca, em forma de santuário, dentro de todos nós que te procuramos um dia para a cumplicidade dos nossos momentos de amor sem malícias, que esbarravam nos beijos.
Dizem as más línguas que um mossoroense afoito construiu o Cine PAX, pois Mossoró não podia perder para Natal nem nos Cinemas, e logo descobriram que PAX não era o que à primeira vista parecia significar, e, sim, a sigla de Para Abafar Xixico. Era a velha e fraternal rivalidade entre as duas cidades, irmãs desunidas, que se fazia presente mais uma vez.
À noite, após as aulas e os namoros, os encontros no Grande Ponto. Confeitaria Cisne, Casa Vesúvio, de Maiorana, O Botijinha, depois Bar Dia-e-Noite (em cima funcionava a sede do Santa Cruz Futebol Clube, de Zé Guerra, de Zé Lins, pior do que o pior jogador de futebol do Íbis, de Pernambuco, mas de uma abnegação ao clube tão grande que o tornava um gigante no gramado do Juvenal Lamartine, defendendo as cores do seu time). Do outro lado, Raimundo botava seu moinho para rodar e vender caldo de cana com pastel, pão doce, soda ou brote. Tudo a gosto do freguês. Todos tinham medo do caldo de cana “picado” ou azedo, pois fazia rebrotar antigas gonorréias, tratadas com sulfa, comprimidos de Cibazol e dedadas de Dr. Pedro II, em cima do OK Bar, em frente ao Rex.
Sorveteria Cruzeiro, de Antônio China, com a radiola de fichas, onde eu me debruçava, suspirando saudades do primeiro amor, escutando Elizete Cardoso cantar “saudade, torrente de paixão, emoção diferente...” Depois, o Café São Luiz“100% puro” tomou o lugar da sorveteria. O Botijinha, de Jardelino; Café Maia, de Rossini Maia, goleiro dos bons, que defendia o América de gorro na cabeça; A Capital, depois Lojas Seta; Foto Grevy: Cigarreira do Valdir, onde se comprava cigarro americano contrabandeado, a começar do Chefe de Polícia da época, que só fumava “Chesterfield”; Confeitaria Helvética; Salão Santo Antônio, de Toinho barbeiro, onde seu Manduca, meu barbeiro, afiava a sua “Solinger” numa tira de couro e oferecendo, após a barba, “tarco” ou “água verva”. Ourivesaria Lopes e a confeitaria das duas “caritós”. Em frente, ficava o ponto final ou inicial do bonde de Petrópolis, que voltava da curva, na avenida Getúlio Vargas, esquina com a atual Dionísio Filgueira, onde havia o sobrado do Coronel Guerreiro; Farmácia Almeida, de Edmilson, irmão do “Dr.” Alcides, enfermeiro nota dez, depois vendida a Israel Brasil, quando mudou de nome para Farmácia Grande Ponto, onde Raimundo, diplomado em injeções, atendia, duas a três vezes por semana, a turma das “gloriosas” ou “bronhas”, como queiram, que tinha medo da tuberculose que o excesso poderia provocar (como diziam os mais velhos).
Turma boa aquela, que não podia ver uma foto mais arrojada de mulher bonita. Botava a revista em baixo do braço, e a carreira para o banheiro mais próximo era fatal. Depois, o suor, o cansaço, o medo da tuberculose. O último ato era sempre na Farmácia Grande Ponto, nas seringas de Raimundo, onde ele garantia as próximas, com vitamina C e cálcio Sandoz na veia. O time vasto das “gloriosas” fazia fila. Ah! Ademar Maroca, Agenor, Macaquito, Jurinha, Jair Navarro, Tião Medeiros, João Maria, Miguel Purrunca, Aldo Viana, Ivanildo “Deus”. É bom lembrar que esse apelido se deu porque Ivanildo foi testemunha ocular de dois fatos importantes acontecidos no mesmo dia, na mesma hora, em dois extremos da cidade: um nas Quintas, o outro nas Rocas. Sandó, Pedro e Paulo Dieb, Desenho, Pingüim, Carlinhos Lira, Zé e João Gurgel, Zé Correia, Ademar “Rato Branco”, João Pavão, Zé Guerreiro, que numa briga enfrentou três marinheiros com uma banda de tijolo em cada mão, e botou-os para correr com os rostos deformados, e tantos outros bons de mão.
Como eram líricas as tardes do Grande Ponto, com as piadas de “Deus”, de Aldo Viana, a elegância de Lucilo Reis, solteirão magro e feio, com seu metro e meio de altura e o diploma de “inventor de rapaz solteiro”, tomado de Jair Navarro, num concurso tumultuado. Era esse universo, verdadeiro caleidoscópio poético, que compunha o Grande, que um dia foi meu. O Grande Ponto era tão importante que tinha lugar de destaque no mapa do Brasil. É.
Até as ruas e praças que protegiam o Grande Ponto tinham nomes líricos: Praça da Alegria, hoje Padre João Maria; Praça das Laranjeiras; Rua do Fogo, hoje Padre Pinto: Rua Nova, hoje Av. Rio Branco; Rua da Palha, hoje Vigário Bartolomeu. Mais parecia o Vaticano, com o devido respeito. Por pouco, o Grande Ponto não virou Praça São Pedro. Para isto, resistiu heroicamente. Rua da Estrela; travessa do Tesouro, que ligava a rua da Conceição à rua Nova. E, plagiando Bandeira, como eram lindos os nomes das ruas da minha infância...
Grande Ponto dos protestos de Maria Boa, que, aos domingos, cinco horas da tarde, hora em que a nata da sociedade natalense se concentrava ali, passava devagarinho, acintosamente, no seu “conversível”, com motorista e tudo, abarrotado das prostitutas respeitáveis e mais bonitas da cidade, a maioria importada, cuja porta-estandarte era Eurídice, gaúchona pra 50 talheres. Os olhares curiosos das mocinhas, a indignação das damas do “soçaite”, os acenos discretos dos respeitáveis “senhores maridos fiéis”; da estudantada, para quem sempre sobrava um “pão com manteiga”, faziam a felicidade da boa Maria de Oliveira Barros.
Contam que um certo e respeitável senhor da sociedade, muito conhecido por seu espírito gozador, fora avisado por Maria de que havia comida nova na mesa. Expediente usado para clientes especiais, sempre que chegava algum produto importado no mercado. Marcaram o encontro, mas o cidadão chegou atrasado. Por coincidência e para maior infelicidade sua, seu filho, também boêmio, moço, bonito, cheio da grana, e de gosto refinado, chegou por lá, conheceu a menina e convidou-a para um “programa”. Pouco tempo depois, chegou o tal senhor se esbaforindo e faminto de Eurídice, tentando explicar o atraso, e Severino, irmão de Maria, que servia a todos como garçom, disse à pobre vítima: “Doutor, seu filho esteve aqui e saiu com Eurídice”. As mangueiras do sítio de Maria tremeram e suas mangas e o mundo inteiro desabaram sobre o respeitável cidadão, que, amargando a frustração, mas sem perder a pose, estufou o peito e disse: “Severino, quando aquele sacana sair do quarto, diga-lhe que estive aqui, mas fui embora, pois vou comer a mãe dele!”
Grande Ponto dos “coronéis” da política, que enfeitavam as noites daquele verdadeiro campus universitário, com seus ternos de linho branco irlandês 120, de borracha pele de tubarão e sapatos Fox ou DNB de duas cores. Os chapéus mais pareciam sombreros mexicanos, cheirando a verbas da “indústria da seca”, tudo dinheiro do povão. Nas convenções da UDN ou PSD, eles lotavam o nosso espaço. Em compensação, eram pratos cheios para nossas gozações. Certa feita, fiz um pacote, cujo conteúdo era uma pedra de uns cinco quilos, caprichosa e artisticamente embrulhada como presente, e pedi a um dos poderosos chefões para, “por obséquio”, segurar enquanto eu ia ao banheiro, na rua Princesa Isabel, onde ficávamos gozando a generosidade do matuto, coitado, que, com o passar do tempo, não suportando segurar tanto peso, colocava o pacote no chão e ficava de vigia, a olhar para os lados, à procura do dono.
Outra forma de gozar os ilustres convencionais era queimar um pedaço de pano na esquina oposta, esperar que o vento levasse até eles o cheiro do pano queimado e ficar a rir com cada um procurando se algo estava queimando em sua roupa. Havia também o chamado “peido alemão”, produto químico para agricultura, hoje proibido, cujo vidro era aberto em lugar do pano. Depois era só ver os matutos e quem mais estivesse por ali, esvaziarem, em segundos, o Grande Ponto, pois o odor era tão insuportável que matava a praga das lavouras. Numa sessão de filme educativo sobre sexo, exibido depois das dez horas da noite no Cine Rex, em determinados dias, abriram (só abriram) um vidrinho daqueles. Não ficou ninguém, nem os artistas do filme. Naquele dia, o autor, se apanhado, seria linchado. Hoje, confesso, eu fui o autor.
Nos dias atuais, a brincadeira é queimar os pobres mendigos, os inocentes índios, numa prova de evolução e machismo, que eu prefiro chamar de involução e verdadeira selvajaria, fruto da mentalidade que o golpe de 64 e os políticos atuais, corruptos e safados (com raríssimas exceções), estão nos impondo cruelmente.
Falar nisso, lembrei dos veados e outros animais honestos que formavam a ecologia daquela Pasárgada, que tinha seu próprio rei, diferente do de Bandeira. Era o nosso Luizinho Doblechen, o maior Rei Momo do mundo, que, no seu último reinado, entrou no Aéro Clube completamente embriagado, e todo “obrado” em conseqüência de cinco comprimidos de Purgoleite, que coloquei na sua bebida. Djalma Maranhão, presidente da Federação Carnavalesca, “vermelho” de raiva diante de tamanho vexame, derrubou seu reinado que foi ocupado por Severino Galvão. Naquela selva, podia-se ver desde pingüim a elefante; de rato branco e de papagaio rolé aos veados mais famosos das passarelas. Quem esqueceu Pinóquio, empregado do “coronel” Felinto Manso, e líder da bicharada? Detefon, Madame Sônia, a Cartomante, e “seu” Martins, modista e costureiro, professor de Clodovil?
E o mudo que era fresco (não confundir com o outro que cuidava do trânsito)? E eu ficava a imaginar como seria o orgasmo de um mudo fresco...
Por dez centavos dados por nós, Detefon, sacana todo, ia perguntar ao enfermeiro Cícero (que tinha mais raiva de viado do que era possível) se ele podia lhe aplicar uma “chibatosam nas nádegas”. E Cícero, à beira de um enfarte, gritava: “Não, viado filho da puta! E não é Chibatosan, é Phimatosam!” Ao que Detefon dizia: “Eu sei, Cicinho. É só frescura”. E tome perna, porque se Cícero o pega, estava praticado o primeiro viadicídio no nosso Grande Ponto.
Chegavam a Natal os primeiros sargentos da Aeronáutica, e, depois, mais e mais. Eram jovens cariocas recém saídos da escola de Sargentos da Aeronáutica, que vinham estagiar em Natal, e tomar nossas meninas, pois muitas provincianas se encantaram com a chiadeira da voz dos galãs, e nos deixavam a ver navios. Ou aviões? Ficamos praticamente na mão, sem matéria-prima, pois os cariocas monopolizaram o comércio amoroso. Nossas ações sofreram uma queda brutal na Bolsa de Amor e chegaram à proporção de cinco grandepontenses para um carioca, e, muitos deles, arrogantes diante da situação de mando de campo, tiveram que levar alguns tapas. Estabeleceu-se um clima de disputa no qual perdíamos no feminino, mas ganhávamos no tapa. Alguns deles se tornaram nossos amigos, como Rildo Gonçalves, lançado por mim em teatro, hoje ator e advogado em São Paulo, e Paulo Casals, que também ingressou no mundo artístico do Conjunto Teatral Potiguar, dirigido pelo saudoso Sandoval Wanderley, e, do qual, eu era integrante e diretor de cena. Mas a grande verdade é que aqueles meninos cariocas infernizaram a nossa vida amorosa, até que as tais provincianas descobriram que a única coisa que nos diferenciava era o sotaque, porque o resto era tudo igual, principalmente em tamanho e competência.

Memorial do Grande Ponto

Celso da Silveira

Os bares do Grande Ponto
tenho os seus nomes de cor:
Botijinha, Dia-e-Noite,
Acácia Bar, Rio Grande,
Onde a cachaça de Ovídio
Dessendentava a goela
De Evaristo e Babuá.
Confeitarias - um par:
A Helvética e a Cisne;
Casa Vesúvio - bazar,
e adiante o Natal Clube,
Santa Cruz Futebol Clube
- os dois de primeiro andar.

Cafés Maia e São Luís,
Sorvete do Aracati,
Restaurante Dois-Amigos
com porta de vai-e-vem
e freqüência popular.
E Restaurante Acapulco,
local a que acorriam
Casais da sociedade
E rapazes bem trajados,
Todos lá fazendo hora
Para o baile do Aéro
- requinte/mor da cidade.

Numa esquina, a Alcazar
E na outra o Grande Ponto
- casa de jogos de azar -
um verdadeiro universo
de Tubiba à Mulamanca,
pro poeta fazer verso
como faz Milton Siqueira.

Lá, o Bolero servia
comidas de pratos quentes,
mas, já do lado de cá,
junto do Beco da Lama,
o Pérola vendia bifes
aos habitantes da noite
que voltavam dos bordéis
pra saciar outras fomes.

Lembrança de João Machado
Rutiquiano e Ercilo
(que foram ali quase Reis);
Sorveteria Cruzeiro
e do Salão Santo Antônio;
cigarreira O Zepelim,
que vendia bugigangas
e tinha o jornal/mural
onde "seu" Luiz Cortez
dava notícias do mundo
como que em primeira mão.
Juizes, advogados,
até desembargadores
e muitos aposentados,
recrutas e general
Leitão, Liliu do bilhar,
todo pessoal letrado
- são sombras na paisagem;
foi lá que estreou veado
um tal de Velocidade,
contraste de Tororomba.

Conversas de futebol
de torcedores e atletas,
cada um é melhor técnico
do América ou ABC,
Riachuelo e Atlético,
E o grito marcando gol
Está na boca de todos.

Carnaval na João Pessoa,
Deblechem vem de rei momo
ao lado de Zé Areia
e Djalma Maranhão;
se batalham de confete
e lança-perfume Rodo.
Papangus e colombinas
no toque da banda ao vivo
dançam ao som do "Zé Pereira"

Luís Tavares, de linho
LS-120
sapatos de duas cores,
bico fino de camurça,
ou couro de jacaré,
ditava a moda da praça
e ainda dava de graça
seu jeito de meninão.

Sorveteria Polar
(pianista Paulo Lyra)
onde se falava inglês
- "US Navy, my friend" -
de Aparício Meneses
ao engraxate da casa,
no tempo do americano.
O primeiro telefone
de serventia do povo
(nosso orelhão de outrora)
- "basta pagar e ligar" -
ficava numa cabine
toda vedada de vidro,
na antiga Casa Royal,
onde os segredos guardados
não coravam as namoradas.

É um espaço em aberto
à gente de toda parte;
convergência da cidade,
encontro de viajantes
e de onde as línguas feriam
moças vindas dos cinemas
Rex, Nordeste, Rio Grande,
Ou mesmo, quando mais cedo,
Retornavam das novenas.

Centro referencial
de política e cultura,
de oposição e governo;
a palavra ali falada
no palanque dos comícios
ganharam tal ressonância
que nos seus cantos ecoam,
não, grande ponto final
- leve som de antigamente -
reticência, ponto e vírgula,
mas, ocasionalmente,
exclamação, coisa e tal,
força lúdica, dominante
deste seu memorial.

05.05.83
Editora Clima - 1983