Reeditado a partir do
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O tempo passava e o mar se tornava cada vez mais próximo, mais presente. Nos anos trinta a quarenta, ele era pouso obrigatório das famílias de classe alta, que durante o verão migravam para a areia, mudando-se completamente para as suas residências praieiras. Eles levavam mobília, pertences, empregados e, por até três meses, fixavam-se ali. Não havia visitas esporádicas à cidade. O reabastecimento dos mantimentos ficava por conta de algum criado, que ia e voltava da cidade à pé, trazendo os pacotes nos braços.
Muitas de nossas praias urbanas encontravam-se ainda selvagens, seu grande atrativo era a tranquilidade, o repouso. Natal já possuia muitos dos traços urbanos da época e as pessoas buscavam modos alternativos de vida durante as férias, fugindo da cidade.Os veraneios de antes eram bem semelhantes aos de hoje, as diferenças ficavam por conta da relação entre as pessoas, todos ali eram amigos, parentes, conhecidos ou filhos de conhecidos. Havia segurança e confiança nos nativos do lugar. Os pescadores da área ajudavam a vigiar as casas e tinham livre acesso às suas portas. Claro, o mar era um prazer para um público seleto. Contavam-se poucas casas de veraneio, mas estas congregavam bastante gente, grandes famílias com muitos filhos, primos e sobrinhos.
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Os novos exploradores do mar tinham liberdade para conhecer a área e descobrir os brinquedos do litoral. O território do Forte dos Reis Magos era aberto, sem vigilância, o que o tornava cenário favorito dos pique-niques organizados na época, uma diversão que durava um dia inteiro. A rotina dos dias resumia-se a passeios, brincadeiras na areia e banhos de mar, este último, o mais apreciado. As noites ficavam por conta dos violões dos seresteiros, que reuniam toda a gente das vizinhanças nos alpendres, embalando flertes e conversas com suas canções, que fluiam ao sabor da maresia.
O médico Jahyr Navarro, antigo veranista da praia de Areia Preta, - a primeira a abrigar esse tipo de casas - acompanhou o desenrolar de três décadas naquelas areias. Ele recorda que quando menino seu passatempo favorito era escorregar nas dunas sentado numa prancha de madeira, lubrificada com um pouco de cera de vela. Isso, em 1935, muito antes de alguém associar essa prática ao esporte de neve e apelidá-la de "skibunda". Navarro lembra de detalhes do cotidiano nas praias, como o ônibus amarelo da Força e Luz, única alternativa de transporte além do bonde. "Era um ônibus amarelo da companhia de luz elétrica, que quando chovia era obrigado a ultrapassar o barro acumulado na ladeira do sol de marcha ré, as crianças o usavam como meio de chegar até a escola".
Saudoso daquele tempo, Jahyr recorda ainda a atmosfera das praias na década de cinquenta, quando se reunia com seus companheiros no bar "É Nosso", para ensaiar as marchinhas de carnaval que seriam cantadas nos bailes do Aero Clube - sucessor do Natal Clube na preferência do high society. Vem dessa época também, o surgimento da Praia dos Artistas, mais reservada que as demais. A origem do apelido deve-se a fama de ter hospedado os grandes artistas do rádio, como Cauby Peixoto, Francisco Alves e Maria Creuza, que a escolhiam por estar mais distante da concentração de pessoas. Lá eles podiam tomar banho isolados na prainha. Algum tempo depois a fama de esconder artistas começou a atrair mais gente para a praia, afastando os frequentadores ilustres, mas, deixando o rótulo.
Começava a se espalhar a moda da paquera na areia, "Conhecíamos o ‘ponto’ onde cada moça tomava sol. Elas sempre escolhiam o mesmo lugar, para facilitar o acesso dos pretendentes", afirma o médico. Claro, todo o envolvimento transcorria com muita discrição, não se sonhava ainda com as ousadias de hoje em dia.
Na década de cinquenta, as praias de Natal tiveram a exibição do que seria um traje de banho moderno. A primeira mulher a pisar vestida de maiô numa praia de Natal foi uma aeromoça espanhola, trazida por um rapaz chamado Faruk. A visão das suas curvas ajustadas na peça, que se estendia até os joelhos, desencadeou um tumulto imprevisto nos rapazes, que ameaçaram reduzir bem mais o tamanho do traje, arrancado-o aos pedaços. Felizmente, a moça foi protegida e seu maiô escapou ileso. Era a modernidade começando a arranhar nosso provincianismo.
Música, arte e psicodelismo na areia
Mas, cedo ou tarde as mudanças chegariam. Nos anos sessenta a concentração de banhistas se deslocaria de Areia Preta até a Praia do Forte, com suas piscininhas naturais e a imponência do Forte dos Reis Magos guardando o lugar. Para lá se dirigiam as famílias, crianças com pás e brinquedos de areia, casais de namorados que caminhavam de mãos dadas sob o olhar de todos.
A Praia do Meio, na sua condição de ser do meio, deixava que viessem a ela as classes mais baixas: quem descia das Rocas ou tomava o ônibus no Alecrim ou Cidade da Esperança. O pessoal de uma praia não invadia as areias da outra, cada um consciente de seu espaço.
Com os anos setenta, novos ventos sopraram naquele pedaço de praia. A revolução mundial dos costumes refletia por aqui. Contracultura, movimento hippie, baseados, tudo isso vinha aportar também em nossas praias. Filmes como Easy Rider e Woodstock eram exibidos na Sessão de Arte do cinema Rio Grande, discos dos Beatles e dos Rolling Stones evaporavam das prateleiras. O comportamento jovem passava a ter outro relevo. Tudo era determinante, as roupas que se usava, aquilo que se comia e, claro, a praia a qual se frequentava. Segundo o músico Luiz Lima, que viveu ativamente essa época, " no início da década de setenta, começou a acontecer uma transformação nos ares e nos lugares da cidade, em toda parte a moçada começava a se dividir. De um lado ficavam os ‘caretas’, de outro, nós, os ‘malucos’ ".
Para os caretas, tudo continuaria igual, já os outros precisariam de mais espaço para estravazar sua arte e inconformismo, distante da área militar e família da Praia do Forte. Foi aí que se descobriu a Praia dos Artistas.
A praia deixava de ser um lugar destinado apenas a caminhadas ou banhos de sol e mar, tornando-se porto para o deleite do corpo e da mente, aproveitado ao longo de todo o dia e também durante a noite. Logo começaram a surgir bares, barracas, quiosques, boates, espaços culturais, que se estendiam da Praia dos Artistas até a Praia do Meio, que se tornaram cartão de visita de Natal e grande opção de quem quisesse conhecer a noite da cidade.
As areias ganhavam o colorido das batas indianas, camisetas explodindo em motivos psicodélicos, e o brilho dos corpos ao sol rivalizava com o brilho das lantejoulas ao luar. Arte e cor eram trazidas por uma grande leva de estudantes universitários, pretensos artistas locais, que tinham na Praia dos Artistas seu ancoradouro. O país atravessava uma fase de ditadura e opressão, talvez por isso, o ato de criar se fizesse tão necessário.
Poeta Carlos Gurgel
Bares como o Tirraguso, o Artmanhas, a Casa Velha se enchiam de rostos jovens. Eram atores, dançarinos, artistas plásticos, poetas ensaiando o que ia ser a época de ouro da cultura da cidade. Todos fazendo uso daquele espaço para mostrar o que sabiam. E não parava por aí...o tinham as barracas toscas da Praia do Meio, ainda na areia, como a famosa "Barraca da Marlene" para quem queria sentir o mar perto. "Era nas barracas que nos reuníamos para compor as melodias da banda Gato Lúdico, eu, Jaime Figueiredo, Carlos Lima e Claudio Damasceno. Lá vivíamos noitadas acompanhados do violão, dos mixes de cachaça com cerveja e tiragosto", lembra o arquiteto e artista plástico Vicente Vitoriano.
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Na época, a praia possuia dois espaços culturais: a Galeria do Povo e o Artelier. Também abrigando o primeiro restaurante macrobiótico de Natal, onde o pessoal ia se liberar das toxinas consequentes dos excessos noturnos com os pratos do proprietário Véscio Lisboa. Na segunda metade dos anos setenta, surgiu o Festival do Forte, idealizado pelo músico Luiz Lima, o artista plástico Sandoval Fagundes e o escritor Carlos Gurgel.
Artistas natalenses ocupando o Forte dos Reis Magos para o I Festival de Artes do Natal
"O festival acontecia na terceira lua de cada mês e era um momento de muita música, muita poesia e muita loucura, depois disso, nunca houve nada em Natal tão contundente para nossa cultura como o Festival do Forte", recorda hoje Gurgel, com os olhos cheios de nostalgia. Yuno Silva, estudante de Comunicação, era criança nesse período, mas lembra de quando era levado pelos pais junto com o irmão para curtir o festival, "Os moleques ficavam pulando naquela casa de armar no meio do Forte. Era incrível, sendo criança, ver de perto artistas como Raul Seixas, Gil, Jorge Mautner, Jards Macalé...são tempos que não voltam mais."
Dunga e Volontê na Galeria do Povo, 1977
Durante os anos setenta e oitenta, a praia dos artistas era um lugar concorrido durante toda semana. A jornalista Cione Cruz diz que " a partir das quintas feiras, íamos à praia de dia para tomar sol e à noite exibíamos nosso bronzeado nos bares e boates de lá". Havia ainda uma turma que fazia da praia dos artistas a sua casa, gente que chegava de manhã, depois da aula, de mochila nas costas, trocava o calção de banho e ia jogar frescobol nas areias ou surfar naquelas ondas. Um bom exemplo desse tipo de frequentador era o jornalista Flávio Rezende, assíduo jogador de frescobol, "chegava por volta da 11, 12 horas, depois das aulas do curso de Comunicação da UFRN e ficava até às 18 horas". Nos anos oitenta se intensificou também a prática do surf, daí vieram o campeonatos ao bar caravela, transmitidos nos alto falantes. "Sinto saudade do rock muito alto que tocava durante os torneios, dos amigos sem hora pra ir embora, as paqueras na beira da praia e os beijos na boca apaixonadíssimos, que até deixava a gente meio fraco..."
Com a ida dessas décadas, foram-se também a grande maioria dos frequentadores do lugar. A maturidade e as ocupações iam distanciando pouco a pouco os antigos. E a falta de segurança inibia a formação de uma nova geração de praieiros. A reurbanização e construção dos quiosques de cimento, ao invés das barracas, não foram suficiente para assegurar a reestruturação da área.
Natal acontecia agora bem longe dali. As diversões eram outras, as praias também. A burguesia ia de carro até os distantes litorais norte e sul, procurando aquilo que já não se via mais no urbano: segurança, tranquilidade. O desfile de beleza nas praias urbanas, as paqueras no calçadão, davam lugar a um outro tipo de oferta. O "quem me quer" adquiria outra feição com a explosão do turismo e a procura dos estrangeiros pelas mulheres locais.
Somente o mar continua o mesmo
O mar urbano traz nas suas espumas as lembranças... a bruma e o seu cheiro são os mesmos, mas a ambientação mudou.
Espigões enormes dividem mar e cidade, no alto da ladeira do sol.
Arredores menos disputados, deslocados e diferenciados. A praia dos artistas concentra alguns bares, duas boites e um restaurante badalados, dividindo espaço com lojas e feirinhas de artesanato. Dividindo seu público com as feirinhas de artesanto. Da praia do meio em diante, é visível o abandono.
Um outro hotel e algumas pousadas, o centro de artesanato e os quiosques esquecidos, num lugar antes abrilhantado pelo público mais exigente da cidade.
A Tenda do Cigano, com seu caldo de feijão a
cavalo, era o fim de noite para muitos
"Quando a barraca era na areia, o movimento era muito bom. Hoje a época é outra", fala a saudosista Marlene Dias da famosa "Barraca da Marlene", descrente de dias melhores, nos seus 22 anos de praia. Para os frequentadores antigos das praias não restam dúvidas: as barracas à beira-mar deixaram saudades.
Simbolicamente os atuais quiosques chegaram para assistir ao fim áureo. A segurança, agora fragilizada, um dia já garantiu que as pessoas pudessem frequentar e visitar os locais praieiros com tranquilidade.
Enquanto foram redutos de muitos turistas que ficavam hospedados no Hotel Reis Magos, as Praias dos Artistas e a do Meio, viviam sua época de agitação. Hoje, o turismo é uma questão abordada com delicadeza por inferir imediatamente a exploração sexual das redondezas. Os turistas que procuram se instalar nas pousadas dessas praias, muitas vezes estão ali por economia. Como é o caso da jornalista sueca Agatha, 34 anos e o seu marido Chrytian, de 37. Eles dizem preferir fazer de conta que não vêem o que acontece de feio nas proximidades da pousada e ir conhecer outras praias do Estado.
Centro de Artesanato foi construído onde se fazia a Galeria do Povo
Os demandos socioeconômicos encontrados pelas areias urbanas da cidade do Natal deixa evidente o processo de decadência que está sendo vivido. "Encontramos nas praias crianças com fome, envolvidas com drogas e prostituição. A sociedade e os governos não podem permitir isso de modo algum, principalmente de maneira tão visível como aqui", comenta Andréia Barros, que trabalha no comércio de artesanato na praia do Meio.
As praias já foram redutos de grupos que passavam horas agradáveis curtindo todos os prazeres possíveis, e produzindo arte e cultura na cidade num dos painéis mais bonitos. Agora, os poucos resquícios da invasão das artes dos anos anteriores são guardados. Somente as feiras de artesanato e os vendedores de artefatos hippie permanecem. Como o artesão Henrique Eduardo, 32, formado em Engenharia Textil, que hoje sobrevive da venda de suas bijouterias e tem os turistas como clientes."Gosto de trabalhar nas ruas, quando não estou aqui vou para Ponta Negra".
As perspectivas para o futuro do comércio e dos moradores das praias ainda não são muito calorosas... projetos de revitalização abrangentes devem ser providenciados, sendo a revitalização humana talvez a mais urgente... para um pedaço da cidade que tem estimulado a deploração.
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