Sanderson Negreiros
Como se comportava Natal há um século atrás, quando o poeta Ferreira Itajubá chamava-a vale ameno e de branca Jericó? A começar pelo próprio Itajubá, figura admirável, talvez o maior talento poético que já possuímos, sem nenhuma formação cultural, sem sequer ter terminado o curso primário, mas, ao mesmo tempo, o primeiro poeta que fugiu da poesia candoreira de um Segundo Wanderley - prolixa e grandiloqüente e dos ativos formalistas dos parnasianos - para incorporar a luz, o chão, a paisagem, as cores tropicais, o quotidiano à sua poesia. E que se não chegou a ser uma poesia revolucionária, pelo menos dava um toque único, intransferível, de um talento singular, usando, por exemplo, palavras proparoxítonas, muito antes de Augusto dos Anjos e aí está o verso "a solidão tristíssima dos morros".
Natal, há cem anos, era uma festa. A professora Isabel Gondim, poetisa algumas vezes, realizada salões literários à maneira dos célebres salões da belle époque de Paris, quando ela recebia convidados, sentada sozinha em seu sofá, com elegância e pompa característica, como se fora uma nova Madame Récamier. Sabem onde? Na rua Chile, ali na Ribeira, e para onde certa vez, caminhou o juiz de direito, Costa Pinto, de maneira escandalosa, com típico humor natalense: chegou ao elegantíssimo sarau de dona Isabel, acompanhado de toda família, mais o papagaio e o cachorro vira-lata de estimação. Dona Isabel, que nasceu em 1838, morreu na década de 20, aos 94 anos, sempre falando mal de sua conterrânea Nísia Floresta, a quem chamava literalmente de mulher de vida livre.
Natal tinha no fim do século passado mais de cem jornais - de todo tipo: diários, semanários, mensais, pasquins. Há cem anos, Pedro Velho, na casa dos 40, comandava a Oposição - era republicano feroz, tocando Chopin para os amigos, na boca da noite, lendo os clássicos e sofrendo uma campanha jornalística imperiosa de Elias Souto, que o detratava de toda maneira. A polícia era radicalíssima. Centenas de boletins cruzavam a pequena cidade de sete mil habitantes e atingiam as honras e a paz provinciana.
Proclamada a República, Pedro Velho é chamado pelos militares; e o governo lhe é entregue. Não respondeu aos insultos e manteve uma atitude olímpica, até que a Junta Revolucionária, lá no Rio, enviou Adolfo Gordo, que nunca tinha vindo ao Rio Grande do Norte, para governar o Estado. Pedro Velho teve uma decepção profunda. O novo governador só agüentou um ano - renunciou, e Pedro Velho assumiu o poder, instituindo o que foi chamado de oligarquia Maranhão. Até morrer, aos 51 anos, num camarote de navio, no porto de Recife, ouvindo um amigo ler-lhe a "Gioconda", de Gabriele D'annumzio, mandou no Rio Grande do Norte como senhor absoluto.
Se Jorge Fernandes depois anunciava em verso que "a luz elétrica do meu tempo vinha com a lua cheia", Natal era dominada realmente pelas serenatas. Os presidentes de província que aqui aportavam, nomeados por Dom Pedro II, caíram na gozação popular: mal passados dos 20 anos, elegiam a Redinha para ouvir modinheiros famosos como Lourival Açucena, comendo tapioca e peixe frito; a administração estadual que se deteriorava. Venham para gozar as delícias do poder - "o governo do Rio Grande do Norte é um piquenique eterno" - dizem os jornais da oposição da época. O mais famoso aqueles presidentes foi o dr. Parrudo, que além dos banhos no mar da Redinha, e na lagoa de Extremoz, fugindo do expediente do Palácio, ainda possuía uma casa no Barro Vermelho, para encontros amorosos que soavam como escândalo impertinente, pelo pai de suas namoradas.
A cidade era um sítio. As ruas principais, a da Conceição e Santo Antônio, serviam de palco para sucessivos pastoris e lapinhas, onde os poetas Ferreira Itajubá e Gotardo Neto dominavam a cena, na luta entre os cordões azuis e encarnado. Por essa época, Ponciano Barbosa desfilava na cidade de fraque e cartola, mais uma rosa enfiada em cima do peixe, verdadeiro dândi, fazendo inveja a Oscar Wilde.
Padre João Maria avultava como um santo. Dia e noite, era de vê-lo, montado em seu burrinho, visitando os casebres e pensando as feridas dos pobres doentes. Auta de Souza, lutando contra a tuberculose, fazia versos místicos que eram entoados como hinos pelo povo. Elói de Souza despontava para a política e Augusto Severo subia morros e dunas para olhar mais detidamente os pássaros em seus vôos equilibrados, na brisa vindo do mar.
Já no finalzinho do século, nascia Luís da Câmara Cascudo, na rua das Virgens. Batizado na Catedral pelo padre João Maria. Quem o calentou nos braços, como madrinha excepcional, foi Auta de Souza.
A política fervia num fogo cruzado de acusações, destemperos e desavenças. Muito mais dura e impiedosa do que a de hoje. E o velho sinaleiro, lá da torre da Catedral, usava sinais semafóricos para sonolentos navios que navegam à barra do rio".
O Poti, Setembro de 1988
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