domingo, 4 de outubro de 2009

No anteparo do continente

“A fuleiragem music vai destruir o Brasil lá fora, porque o axé destruiu a imagem de música de qualidade que se tinha do Brasil. Existia na Europa a boa música brasileira. Só iam para Europa os tampas de crush, Caetano, Chico, Gil, Milton. O besta aqui foi muitas vezes. Tinha um tipo de público do cacete. Aí, quando entrou o axé, a fuleiragem, sabe qual o público desta música? Quenga. A fuleiragem aconteceu, mas será que são os músicos que fazem a música? Quem faz é o cara que não gosta de música, mas sabe trabalhar a coisa, contrata uns caras, o jabaculê come por todos os lados, mas não se faz arte".
Alceu Valença




A galera reunida
no anteparo do continente
sem crise de criação
labutados pela derformance de Mersons
ele, sim,
ensadecido beatnick
en-louquecida body arte.
todos pintaram,
pincelaram,
melados/melaram,
carimbaram
tatuaram
ícones,
símbolos,
ideias-gramas
kilos-imagens
até nasceu um novo artista
[prima vez que assi(m)nalou]
plástico dunga.

Plínio Sanderson



Cidadão “Possibilista”
Marcelus pinta em seu ateliê, na Cidade Alta: “Hoje a arte está se autodegenerando”

“Contemporâneo”.

Alerta ao leitor: haverá repetição da palavra ao longo do texto. Nada proposital. A justificativa é auto-explicativa pela temática abordada - a arte contemporânea. E também pela reprodução fiel às palavras do entrevistado: Marcelino William de Farias, conhecido no Beco da Lama e em doze países europeus como Marcelus Bob, um artista plástico contemporâneo de vanguarda. A mistura de adjetivações, esta sim, é propositada. É que Marcelus Bob é múltiplo e suga ainda outras classificações indefectíveis à sua personalidade de cidadão possibilista. Dos grandes nomes das artes plásticas potiguares, Marcelus senta no bagageiro da frase do colega Fábio di Ojuara de que ‘‘toda merda agora é arte contemporânea’’ para contestar obras de artistas ditos contemporâneos.

Um exemplo clássico nas últimas discussões do gênero causou polêmica inclusive nesta vila-Natal. Partiu de críticas do poeta Ferreira Gullar ao artista plástico Guillermo Habacuc. O espanhol pendurou um cão vira-lata pela corda numa parede de galeria de arte. O animal definhou até a morte. Segundo Habacuc, a idéia seria reproduzir uma ‘‘instalação perecível’’ como obra de vanguarda. O artista plástico alemão Gregor Schineider, também ano passado, procurou um paciente terminal como participante de instalação na qual o doente morreria na galeria de arte rodeado de gente. A intenção do artista seria diminuir o medo da morte nas pessoas. Arte contemporânea, moderna ou vanguardista, a tal instalação é passiva de questionamentos tão radicais quanto os propósitos ‘‘artísticos’’ dos ditos.

É o que faz Marcelus Bob, taxado pelos ‘‘artistas de photoshop’’ de artista atrasado, pelo uso de materiais convencionais como a tinta a óleo e tinta acrílica, usada para pintar telas exportadas para além do Atlântico e receber da revista alemã Neve Blatter o status de entre os 100 maiores artistas de vanguarda do mundo. Afinal, o que é arte contemporânea? ‘‘Contemporâneo é viver o período e, mesmo com arte milenar propor temáticas novas. Mas nada de gambiarras que nem a Cosern aguenta mais. É preciso habilidade com o pincel. Meu sorriso é desprezo por teorias; quero ver a prática’’. E completa: ‘‘Não entendo de arte contemporânea, mas sou contemporâneo. Vivo da minha arte há 30 anos. Isso é ser contemporâneo’’. Marcelus disse contar nos dedos os artistas pintores do Estado. ‘‘Hoje se vê artistas multimeios. Quando existia vanguarda era legal. A gente avançava com produções de qualidade. Hoje a arte está se autodegenerando’’.

Para expressar seu protesto sob as artes contemporâneas, digamos, fedorentas, Marcelus Bob prepara uma exposição inusitada. Seus humanóides desta vez serão expectadores de outras ‘‘telas’’. ‘‘Vou expor a anti-obra com as palhetas que uso para pintar meus quadros. Em minha ignorância artística me pergunto se é contemporâneo. Nada mais original que apresentar a originalidade da obra. Duchamp botou um pinico na galeria para fundar a arte contemporânea e os artistas natalenses agora querem colocar seus piniquinhos nos salões que se dizem contemporâneos’’. Pelo menos a opinião do ensandecido poeta Plínio Sanderson foi positiva: ‘‘Original, genial, me disse com o olhão aberto’’, lembra Marcelus. A exposição está prevista para este ano. ‘‘Duas lâminas de eucatex, um galão de PVA, dois rolos de cinco polegadas, 100 metros de nylon, 100 gramas de pitons e está feita minha exposição contemporânea’’.

DOM QUIXOTE

É bem possível que um dos presentes na anti-exposição de Marcelus seja um convidado ilustríssimo, herói literário de várias parságadas: Dom Quixote, aquele mesmo de La Mancha. É que o artista tomou a liberdade de enviar um convite ao filho de Cervantes para visitar pontos representativos de Natal e protagonizar uma série de telas pictórias em que Dom Quixote divide a cena com paisagens da cidade. ‘‘Escolho a temática das séries a partir de estudos e depois desenvolvo pictoriamente’’.

Por que Dom Quixote? ‘‘É dos heróis mundiais o mais perambulante. Andou por tudo quanto é canto. E a meu convite veio a Natal e agora tem vínculo com a cidade por meio da minha arte’’. Estes são os mais novos trabalhos de Marcelus. Dom Quixote talvez seja dos personagens literários mais reproduzidos sob diferentes manifestações artísticas. Nas telas de Marcelus, o esbelto cavaleiro sonhador recebe contornos já conhecidos dos natalenses e apreciadores estrangeiros da obra do transgressor e irreverente Marcelus: os humanóides.

HUMANÓIDES

A marca maior em 30 anos de atividade artística de Marcelus Bob são os humanóides. Eles ganharam vida nos muros da cidade no início dos anos 80. À época Marcelus foi o único autorizado pela prefeitura a grafitar em muros. Os cenários das telas de Marcelus detém, claramente, influência da arte do grafite. Antes de estrear nos muros pintou duas ou três telas para aperfeiçoar o personagem ainda hoje presente em esquinas de Natal. A face dos humanóides são em maioria encobertos pela sombra do capuz. Como explica Marcelus, evoluíram com os anos e mostraram o ‘‘fucinho’’, depois a face inteira. Mas ainda guardam o enigma do capuz.

‘‘Eles podem ser bonitos, feios, gordos ou magros. É um possibilista’’. Todos esboçam expressões sérias, tristes ou angustiadas. Segundo Marcelus é porque ainda estão desentrosados com a sociedade. ‘‘Quando estiverem mais ambientados eles vão sorrir. Por enquanto não há motivo’’. Marcelus disse que expôs um dos seus humanóides na Bodega do Deda, em Mãe Luíza e perguntou aos clientes o que viam na figura. ‘‘Recebi os mais diferentes depoimentos, desde pastor de ovelhas à coisa do demo. Até membro da Ku Kux Klan. É o efeito do personagem encapuzado da sociedade’’.

ARTES VISUAIS

‘‘Sou a favor da arte contemporânea desde que ela alcance a arte’’. A opinião de Marcelus vem seguida de justificativa: ‘‘Isso, na minha ignorância artística’’. Nessa mesma explicação, Marcelus enaltece talentos e revelações da cidade ‘‘de nível internacional’’, sem apoio merecido do poder público. Para Marcelus, há 20 anos os salões e premiações eram específicas aos artistas plásticos. ‘‘Hoje o pintor disputa com escultor, fotógrafo com desenhista nos agora chamados salões de artes visuais, que englobam instalações, objetos - coisa para ludibriar artista’’.

Marcelus disse que propôs premiações individuais aos artistas plásticos ou divididas por categoria à prefeitura e apresentou proposta de exposição ao valor de R$ 80 mil. ‘‘Armei até discussão com um cidadão no bar que me intitulou artista tupiniquim e disse que faria exposição com R$ 5 mil. Mas é exposição profissional? Na prefeitura me disseram que só faz exposições de no máximo R$ 20 mil. São pessoas sem capacidade e sem didática dos próprios assuntos que administram. É tudo ludibriação. É conversa para boi dormir. E boi não dorme mais com papo; boi agora come a vaca’’.’’.

ATELIÊ

Dentro do seu Centro Histórico Marcelus Bob é cidadão do mundo. Nascido no Passo da Pátria em 1958, foi criado no morro de Mãe Luíza e adotou a Cidade Alta há cinco anos. Se existe autodidata dada as essências do existencialismo ou de Piaget, Marcelus Bob é um deles, mas recebeu influêcias do pai repentista e escultor e da mãe, instrumentista de corda. Em casa de arquitetura neoclássica na Rua Gonçalves Ledo, o artista montou seu ateliê na entrada de sua morada.

No espaço de aproximados 25 metros quadrados, a tela de trabalho está situada ao centro. Na mesa escorada na parede ficam empilhados Cds em maioria de rock progressivo como Pink Floyd, junto ao som. No instante da reportagem o artista ouvia o último álbum do compositor potiguar Geraldo Carvalho. Também à mesa o troféu O Poti, do qual lhe rendeu vídeo no youtube já com milhares de acessos dada sua performance verbal ao receber a premiação. Mais encostado, o livro do poeta natalense Bianor Paulino: O empalhador de palavras, de haikai.

Ainda no ambiente, palhetas, recortes e quadros, além do violão do roqueiro líder do Grupo Escolar. Marcelus adianta que tem música nova pronta para concorrer mais uma vez ao festival de música MPBeco, em parceria com Paulo Ricardo. É neste ambiente que o artista, sem hora ou compromisso, produz sua arte. ‘‘Pinto quando me vem a mensagem. É como um anjo mandando eu trabalhar’’.

SÉRGIO VILAR
DA EQUIPE DE O POTI

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