Lauro Pinto*
Ontem, como ainda hoje penso, ainda perdurará por muitos anos o maior e mais movimentado ponto de reunião dos "papos" de Natal: a fortaleza denominada Grande Ponto. Lugar de reunião das conversas infindas, dos partidos políticos em assembléias extra-oficiais, dos encontros amorosos, das discussões esportivas, da exibição de vestidos novos, dos aposentados e vagabundos, das fofocas e, mais ainda, do falatório da vida alheia. Sempre foi assim, como em todas as cidades. Antigamente, essas reuniões em Natal, como nos diz o historiador General Pessoa de Melo em seu livro "Natal de Ontem", tinha o nome de - Cantões - cerca de cem anos atrás, e o principal em malícia e vivacidade era o conhecido por "Cantão da Gameleira", situado na Praça da Alegria, hoje, Praça João Maria.
Assim, o nosso Grande Ponto é o Cantão de 1870. Sendo que o de hoje é mais feroz. Ali, nada se perdoa e a língua é a mais ferina do mundo. A pessoa que passa ali - posuda - é logo taxada de corno, filho da puta, ladrão ou pederasta passivo, seja ou não. É preciso, assim, passar humildemente e a todos cumprimentar com um leve sorriso. Do contrário, o pau come, sem qualquer distinção social.
O Grande Ponto é a maior fonte de informações do Estado. Quem tem em primeira mão uma notícia sensacional, corre para transmiti-la nas rodinhas. Os fatos escabrosos são ali analisados, discutidos, julgados. As boas notícias são pouco comentadas. Quando há um boato alarmante, aquilo fica fervendo. Há gente que não passa ali de jeito nenhum, principalmente os que têm imenso rabo de palha. Conheço um natalense que freqüenta o Grande Ponto há quase 30 anos, sem ter faltado um só dia! Campeão de assiduidade e irreverência.
Ali, no Grande Ponto, existiu o maior e mais movimentado clube recreativo, o "Natal Clube", que dominou a vida alegre da cidade por mais de meio século. Muitas gerações ali se divertiram. Fundado no dia 22 de julho de 1906 e dissolvido no dia 5 de novembro de 1968, viveu, assim, 62 anos. Era uma das mais antigas sociedades de Natal, pois, antes dela somente existiam a Loja Maçônica "21 de Março", a Irmandade do Santíssimo Sacramento, a "Previdente Natalense" e a "Liga Artístico-operária".
Natal Clube
O leitor encontrará no final deste livro¹ uma fotografia muito antiga, onde figuram 36 sócios e apenas um se encontra vivo, que é o senhor João Emílio Freire, filho do antigo comerciante Avelino Alves Freire, que foi presidente da Associação Comercial. Hoje, banqueiro aposentado, reside nesta cidade.
Como em todas as sociedades, pois é difícil uma entidade viver muitos anos sem os abnegados, o Natal Clube possuía os seus, e, entre os mais esforçados, estavam: José Pinto, por muitos anos presidente, Teodorico Guilherme, Odorico Pelinca, Antônio Artur, Mário Lyra, Manoel Dantas, Clidenor Lago, Antônio Nesi, João Galvão e outros.
Os bailes, os piqueniques e os carnavais organizados por este clube eram assombrosos em organização, alegria e ordem. Todos os anos, o Natal Clube fazia o natal dos filhos dos sócios. Uma grande árvore era plantada no meio do vasto salão e a distribuição de brinquedos era generosa. Todos saíam satisfeitos. Entre os muitos piqueniques organizados, o maior, e que causou melhor impressão, foi o realizado no Engenho Cajupiranga. Seguiu para lá uma composição de trem que ia lotada. Um verdadeiro sucesso. E também, todos os anos, o clube promovia, dias antes do carnaval, um magnífico "Zé Pereira", com todos os sócios fantasiados, em um bonde enfeitado e música. O "Zé Pereira" assaltava casas dos sócios previamente determinados e eram verdadeiros banquetes, com toda sorte de bebidas, principalmente nas casas de Antônio Artur, Manoel Cristino, Odorico Pelinca e outras. Quanto aos bailes, impecavelmente organizados, eram brilhantíssimos. A melhor orquestra da cidade tinha contrato permanente. E uma coisa curiosa: não havia qualquer briga, como acontece quase sempre hoje nos clubes mais ricos da cidade. E é preciso notar que a bebida, naquele tempo, era gratuita. Hoje, se a cerveja e as demais bebidas de teor alcóolico mais elevado fossem de graça, não haveria briga, e, sim, um conflito municipal,
Para não dizer que nada houve nos bailes de antigamente, verificou-se um fato que ia degenerando em seríssimos aborrecimentos para o clube. Naquela época, já existia a invencível instituição dos penetras. A Diretoria, então, resolveu que só ingressaria no baile o convidado exibindo o convite e sem exceção. Faltava, porém, um sócio para o espinhoso cargo da Portaria, pois muitos consultados não aceitaram. Afinal, foi escolhido o Dr. Júlio de Melo Resende, conhecido por suas qualidades de homem duro, porém muito calmo e educado. O escolhido fez ver a delicadeza do encargo, de vez que as instruções eram severas. A Diretoria insistiu e o Dr. Resende aceitou a missão. Naquela época, os bailes começavam às 21 horas e, já às 19, o Dr. Resende estava no posto de sacrifício. Alguns penetras foram barrados sem qualquer problema. Mas eis que chega um automóvel com o Capitão dos Portos, fardado, acompanhado da esposa e duas filhas. Na porta, foi exigido o convite e o militar disse que havia deixado o mesmo, mas se não tivesse sido convidado, ali não estaria. O Dr. Resende disse então que a família entraria, mas que ele voltasse para apanhar o convite. O Capitão dos Portos não aceitou a sugestão, e o "bolo" estava formado. Começou a juntar o pessoal do sereno. A Diretoria, como era de se esperar, interveio em favor do ilustre marinheiro. Entraram. E o Dr. Resende, sem perder a calma, apanhou o chapéu e deu o fora.
Depois dos dias mais gloriosos do Natal Clube, sócios mais jovens tomaram conta da sociedade, que, embora sem o brilhantismo de antigamente, foi teatro de muitas festas. Edificaram, então, a nova sede. Depois, o clube foi declinando em festas e florescendo em jogos. Transformou-se em sociedade anônima. Quando o prédio estava muito valorizado, foi o mesmo vendido e o clube morreu. Desapareceu uma das maiores tradições da cidade.
Da esquina do Natal Clube, partiram, no dia 14 de janeiro de 1923, em reide pedestre Natal-Rio-São Paulo, os escoteiros José Pessoa, Humberto Lustosa da Câmara, Henrique Borges, Aguinaldo Vasconcelos e Antônio da Silva, da sociedade "Escoteiros Andantes". Chegaram no Rio no dia 2 de agosto, e, em São Paulo, no dia 2 de setembro de 1923. Este reide não foi um passeio a toa, e, sim, tecnicamente organizado, estudado e planejado. O itinerário teve de ser previamente aprovado pela Federação dos Escoteiros de São Paulo. Não é possível dizer em poucas linhas o quanto de sofrimento e sacrifícios agüentaram nossos "raidmen" pelo longo caminho. Picadas de mosquitos, encontro com índios, febres, ferimentos, sede e fome. Afinal, venceram. E a recepção, em São Paulo, foi a maior já verificada na história do escotismo. Basta dizer que o povo se aglomerou na estrada nove quilômetros antes do ponto final. Hoje, quarenta e sete anos depois do grande acontecimento, ainda estão vivos os cinco heróis natalenses.
As ruas e praças da Cidade Alta são quase as mesmas de hoje, com algumas modificações para pior. Assim é que a Praça André de Albuquerque era constituída de um lindo jardim, , com árvores, bancos e um lindíssimo coreto como o que existiu na Praça Augusto Severo, na Ribeira. Fizeram nessa praça várias reformas que não deram certo por falta de cuidado. Hoje, é uma praça acabada. O mesmo aconteceu com as Praças Pio X e João Tibúrcio. Apenas. Apenas surgiu uma pracinha nova que é a John Kennedy, no coração do Grande Ponto.
Conforme disse, as ruas e praças são as mesmas de antigamente, variando apenas com as mudanças de nomes tradicionais e já na alma do povo, como foram as das ruas "Estrela", "Dos Tocos", "Vai-quem-quer" e outras.
Mas hoje, como ontem, o Grande Ponto, a Cidade Alta é o coração de Natal. O movimento hoje é enorme. Lojas e estabelecimentos modernos e artisticamente ornamentados. Ótima iluminação. Pelas 17 horas, temos até a impressão de que estamos em uma cidade grande.
Local predileto para o término dos grandes comícios políticos. Local para ações mais rápidas de aprovação ou de rebeldia.
Não é de hoje este ambiente reinante no Grande Ponto. Sempre foi assim. Em 1917, o bonde de Petrópolis descia para a Ribeira e, ao cruzar com a rua Coronel Cascudo (Beco da Liga Artístico-Operária), atropelou e matou uma pobre velha. A rapaziada correu para lá. O capitão Gilbert prendeu o motorneiro Gonçalo Otávio dos Santos. Chegou o galego da Empresa da Tração Força e Luz. Ficou patente que o motorneiro não tinha culpa, pois a mulher era quase surda e muito deficiente da vista. A coisa estava assim quase que resolvida, quando o galego da empresa disse que "além disso, a mulher já estava muito velha e já podia morrer". A rapaziada, então, revoltada e chefiada pelos líderes Arari Brito e Artur Coelho, começou a depredar o bonde. Vidros quebrados, bancos danificados, etc. Mas o veículo era duro e a coisa ia ser demorada. Resolveram, então, incendiá-lo E chega Antônio Coutinho Madruga com uma lata de querosene. O bonde foi lavado de ponta a ponta e o fogo foi o maior. Em pouco tempo, o carro estava reduzido a um monte de ferros retorcidos. Mário Gurgel, também baderneiro e fotógrafo amador, bateu uma bela chapa do bonde rodeado pelos heróis. A polícia fez uma investigação e só encontrou filhos de gente graúda dentre os incendiários. Inquérito abafado. E, ainda hoje, depois de mais de meio século, o motorneiro ainda está bem vivo para contar o incêndio. Fábio Zambrotti foi a pessoa que gritou: "Fogo no bonde!".
Também no Grande Ponto, no dia 5 de outubro de 1930, o Dr. Omar Lopes Cardoso detonou a primeira e última dinamite por ocasião da Revolução. O estampido foi tremendo e diversas casas tiveram suas vidraças partidas. O prejuízo maior foi o verificado no Cais Tavares de Lyra. Um rebocador estava atracado com uma corda segura na balaustrada do Cais. O rebocador ia levar governantes que se retiravam do Estado com a aproximação das forças rebeldes. Quando o estrondo foi ouvido, o rebocador arrancou sem a prévia retirada da corda e levou a metade da balaustrada.
Até a supressão dos bondes, Natal não teve mais do que quatro linhas, que eram: Petrópolis, Tirol, Alecrim e Circular. Houve apenas variação quanto à extensão. Assim é que o carro de Petrópolis que usava farol vermelho, ia até o fim da balaustrada da Avenida Getúlio Vargas, passando depois a ir até Areia Preta, voltando depois ao ponto de origem. O bonde do Tirol, que tinha o farol verde, ia até o antigo Aéro Clube. O do Alecrim, com farol roxo, ia até a praça Gentil Ferreira, e, depois, até Lagoa Seca. O Circular, sem luz específica, rodava somente entre a Cidade Alta e a Ribeira.
¹. Natal que eu vi.
*In Natal que eu vi, Imprensa Universitária. Natal. Outubro, 1971.
terça-feira, 13 de outubro de 2009
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