sábado, 17 de outubro de 2009

Geografia sentimental do Grande Ponto

José Maria Guilherme

Apesar de tudo, fui feliz na minha juventude. Tive amigos que, como eu, sonhavam com um mundo melhor transbordando de paz, cheio de crianças nas escolas; barriguinhas cheias; saúde de ferro; correndo atrás das pipas, das bolas nas peladas; roubando as mangas, doces de “ripunar”, do sítio do “Dr. Choque”; pegando “morcego” nos bondes (o bonde nove era o pior, tinha o estribo muito alto); fazendo “pendura” na Sorveteria Cruzeiro. Celso, um dos garçons, era o único a entender nossa gula, nossa pobreza, e aceitava nossos “fiados”. Se morreu, deve estar distribuindo sorvetes aos querubins.
Sorveteria Glacial, de Aparício Menezes, esquina das ruas João Pessoa (antiga Visconde de Inhomerim, outrora Cel. Pedro Soares, primeiro proprietário do palacete construído na esquina da avenida Deodoro com a citada João Pessoa, onde hoje vemos o Edifício Cidade do Natal), e Princesa Isabel, antiga 13 de Maio, e antes Rua dos Tocos, onde, toda Quarta-feira, estudante gozava de um abatimento de 50% em cada taça de sorvete.
Atrás da Glacial, Jaecy, o fotógrafo poeta, instalara seu primeiro studio, onde eu ia escutar músicas da melhor qualidade e admirar as fotos-paisagens de Natal, todos os dias após as aulas do 7 de Setembro. Os filmes seriados e; os de Tarzan; Mandrake, o Mágico; Flash Gordon; Os Irmãos Corsos; Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, este , “religiosamente”, na Semana Santa. Tinha gente que começava a chorar já na bilheteria. Gunga Din; os famosos cowboys; Jim das Selvas; A Marca do Zorro; O Príncipe Submarino.
O Cine Rex abrigava casais de namorados que, terminado o filme, nem sabiam seu nome – os beijos não deixavam. Dorothy Lamour, vestida de havaiana, cantando à beira de um lago: “luar e sombras, você junto a mim...” E eu suspirava na platéia. Era minha namorada, sabiam? Muitas vezes, levei-a ao banheiro da minha casa...
Eu marcava o encontro com a namorada já dentro do cinema, ao pé daquelas duas escadas que levavam ao plano superior, o “balcão”. Primeiro, porque o dinheiro mal dava para pagar a minha “entrada”; segundo, porque, ali, o escurinho era mais escuro e servia de manto sob o qual nos isolávamos do mundo e dos olhares curiosos. Quando o filme “quebrava” e a luz acendia, flagravam-se muitos pombinhos em pleno vôo.
Cinema Rex, do velho Xixico, ainda hoje o espaço físico que ocupaste na geografia da cidade-menina está vivo como nunca, em forma de santuário, dentro de todos nós que te procuramos um dia para a cumplicidade dos nossos momentos de amor sem malícias, que esbarravam nos beijos.
Dizem as más línguas que um mossoroense afoito construiu o Cine PAX, pois Mossoró não podia perder para Natal nem nos Cinemas, e logo descobriram que PAX não era o que à primeira vista parecia significar, e, sim, a sigla de Para Abafar Xixico. Era a velha e fraternal rivalidade entre as duas cidades, irmãs desunidas, que se fazia presente mais uma vez.
À noite, após as aulas e os namoros, os encontros no Grande Ponto. Confeitaria Cisne, Casa Vesúvio, de Maiorana, O Botijinha, depois Bar Dia-e-Noite (em cima funcionava a sede do Santa Cruz Futebol Clube, de Zé Guerra, de Zé Lins, pior do que o pior jogador de futebol do Íbis, de Pernambuco, mas de uma abnegação ao clube tão grande que o tornava um gigante no gramado do Juvenal Lamartine, defendendo as cores do seu time). Do outro lado, Raimundo botava seu moinho para rodar e vender caldo de cana com pastel, pão doce, soda ou brote. Tudo a gosto do freguês. Todos tinham medo do caldo de cana “picado” ou azedo, pois fazia rebrotar antigas gonorréias, tratadas com sulfa, comprimidos de Cibazol e dedadas de Dr. Pedro II, em cima do OK Bar, em frente ao Rex.
Sorveteria Cruzeiro, de Antônio China, com a radiola de fichas, onde eu me debruçava, suspirando saudades do primeiro amor, escutando Elizete Cardoso cantar “saudade, torrente de paixão, emoção diferente...” Depois, o Café São Luiz“100% puro” tomou o lugar da sorveteria. O Botijinha, de Jardelino; Café Maia, de Rossini Maia, goleiro dos bons, que defendia o América de gorro na cabeça; A Capital, depois Lojas Seta; Foto Grevy: Cigarreira do Valdir, onde se comprava cigarro americano contrabandeado, a começar do Chefe de Polícia da época, que só fumava “Chesterfield”; Confeitaria Helvética; Salão Santo Antônio, de Toinho barbeiro, onde seu Manduca, meu barbeiro, afiava a sua “Solinger” numa tira de couro e oferecendo, após a barba, “tarco” ou “água verva”. Ourivesaria Lopes e a confeitaria das duas “caritós”. Em frente, ficava o ponto final ou inicial do bonde de Petrópolis, que voltava da curva, na avenida Getúlio Vargas, esquina com a atual Dionísio Filgueira, onde havia o sobrado do Coronel Guerreiro; Farmácia Almeida, de Edmilson, irmão do “Dr.” Alcides, enfermeiro nota dez, depois vendida a Israel Brasil, quando mudou de nome para Farmácia Grande Ponto, onde Raimundo, diplomado em injeções, atendia, duas a três vezes por semana, a turma das “gloriosas” ou “bronhas”, como queiram, que tinha medo da tuberculose que o excesso poderia provocar (como diziam os mais velhos).
Turma boa aquela, que não podia ver uma foto mais arrojada de mulher bonita. Botava a revista em baixo do braço, e a carreira para o banheiro mais próximo era fatal. Depois, o suor, o cansaço, o medo da tuberculose. O último ato era sempre na Farmácia Grande Ponto, nas seringas de Raimundo, onde ele garantia as próximas, com vitamina C e cálcio Sandoz na veia. O time vasto das “gloriosas” fazia fila. Ah! Ademar Maroca, Agenor, Macaquito, Jurinha, Jair Navarro, Tião Medeiros, João Maria, Miguel Purrunca, Aldo Viana, Ivanildo “Deus”. É bom lembrar que esse apelido se deu porque Ivanildo foi testemunha ocular de dois fatos importantes acontecidos no mesmo dia, na mesma hora, em dois extremos da cidade: um nas Quintas, o outro nas Rocas. Sandó, Pedro e Paulo Dieb, Desenho, Pingüim, Carlinhos Lira, Zé e João Gurgel, Zé Correia, Ademar “Rato Branco”, João Pavão, Zé Guerreiro, que numa briga enfrentou três marinheiros com uma banda de tijolo em cada mão, e botou-os para correr com os rostos deformados, e tantos outros bons de mão.
Como eram líricas as tardes do Grande Ponto, com as piadas de “Deus”, de Aldo Viana, a elegância de Lucilo Reis, solteirão magro e feio, com seu metro e meio de altura e o diploma de “inventor de rapaz solteiro”, tomado de Jair Navarro, num concurso tumultuado. Era esse universo, verdadeiro caleidoscópio poético, que compunha o Grande, que um dia foi meu. O Grande Ponto era tão importante que tinha lugar de destaque no mapa do Brasil. É.
Até as ruas e praças que protegiam o Grande Ponto tinham nomes líricos: Praça da Alegria, hoje Padre João Maria; Praça das Laranjeiras; Rua do Fogo, hoje Padre Pinto: Rua Nova, hoje Av. Rio Branco; Rua da Palha, hoje Vigário Bartolomeu. Mais parecia o Vaticano, com o devido respeito. Por pouco, o Grande Ponto não virou Praça São Pedro. Para isto, resistiu heroicamente. Rua da Estrela; travessa do Tesouro, que ligava a rua da Conceição à rua Nova. E, plagiando Bandeira, como eram lindos os nomes das ruas da minha infância...
Grande Ponto dos protestos de Maria Boa, que, aos domingos, cinco horas da tarde, hora em que a nata da sociedade natalense se concentrava ali, passava devagarinho, acintosamente, no seu “conversível”, com motorista e tudo, abarrotado das prostitutas respeitáveis e mais bonitas da cidade, a maioria importada, cuja porta-estandarte era Eurídice, gaúchona pra 50 talheres. Os olhares curiosos das mocinhas, a indignação das damas do “soçaite”, os acenos discretos dos respeitáveis “senhores maridos fiéis”; da estudantada, para quem sempre sobrava um “pão com manteiga”, faziam a felicidade da boa Maria de Oliveira Barros.
Contam que um certo e respeitável senhor da sociedade, muito conhecido por seu espírito gozador, fora avisado por Maria de que havia comida nova na mesa. Expediente usado para clientes especiais, sempre que chegava algum produto importado no mercado. Marcaram o encontro, mas o cidadão chegou atrasado. Por coincidência e para maior infelicidade sua, seu filho, também boêmio, moço, bonito, cheio da grana, e de gosto refinado, chegou por lá, conheceu a menina e convidou-a para um “programa”. Pouco tempo depois, chegou o tal senhor se esbaforindo e faminto de Eurídice, tentando explicar o atraso, e Severino, irmão de Maria, que servia a todos como garçom, disse à pobre vítima: “Doutor, seu filho esteve aqui e saiu com Eurídice”. As mangueiras do sítio de Maria tremeram e suas mangas e o mundo inteiro desabaram sobre o respeitável cidadão, que, amargando a frustração, mas sem perder a pose, estufou o peito e disse: “Severino, quando aquele sacana sair do quarto, diga-lhe que estive aqui, mas fui embora, pois vou comer a mãe dele!”
Grande Ponto dos “coronéis” da política, que enfeitavam as noites daquele verdadeiro campus universitário, com seus ternos de linho branco irlandês 120, de borracha pele de tubarão e sapatos Fox ou DNB de duas cores. Os chapéus mais pareciam sombreros mexicanos, cheirando a verbas da “indústria da seca”, tudo dinheiro do povão. Nas convenções da UDN ou PSD, eles lotavam o nosso espaço. Em compensação, eram pratos cheios para nossas gozações. Certa feita, fiz um pacote, cujo conteúdo era uma pedra de uns cinco quilos, caprichosa e artisticamente embrulhada como presente, e pedi a um dos poderosos chefões para, “por obséquio”, segurar enquanto eu ia ao banheiro, na rua Princesa Isabel, onde ficávamos gozando a generosidade do matuto, coitado, que, com o passar do tempo, não suportando segurar tanto peso, colocava o pacote no chão e ficava de vigia, a olhar para os lados, à procura do dono.
Outra forma de gozar os ilustres convencionais era queimar um pedaço de pano na esquina oposta, esperar que o vento levasse até eles o cheiro do pano queimado e ficar a rir com cada um procurando se algo estava queimando em sua roupa. Havia também o chamado “peido alemão”, produto químico para agricultura, hoje proibido, cujo vidro era aberto em lugar do pano. Depois era só ver os matutos e quem mais estivesse por ali, esvaziarem, em segundos, o Grande Ponto, pois o odor era tão insuportável que matava a praga das lavouras. Numa sessão de filme educativo sobre sexo, exibido depois das dez horas da noite no Cine Rex, em determinados dias, abriram (só abriram) um vidrinho daqueles. Não ficou ninguém, nem os artistas do filme. Naquele dia, o autor, se apanhado, seria linchado. Hoje, confesso, eu fui o autor.
Nos dias atuais, a brincadeira é queimar os pobres mendigos, os inocentes índios, numa prova de evolução e machismo, que eu prefiro chamar de involução e verdadeira selvajaria, fruto da mentalidade que o golpe de 64 e os políticos atuais, corruptos e safados (com raríssimas exceções), estão nos impondo cruelmente.
Falar nisso, lembrei dos veados e outros animais honestos que formavam a ecologia daquela Pasárgada, que tinha seu próprio rei, diferente do de Bandeira. Era o nosso Luizinho Doblechen, o maior Rei Momo do mundo, que, no seu último reinado, entrou no Aéro Clube completamente embriagado, e todo “obrado” em conseqüência de cinco comprimidos de Purgoleite, que coloquei na sua bebida. Djalma Maranhão, presidente da Federação Carnavalesca, “vermelho” de raiva diante de tamanho vexame, derrubou seu reinado que foi ocupado por Severino Galvão. Naquela selva, podia-se ver desde pingüim a elefante; de rato branco e de papagaio rolé aos veados mais famosos das passarelas. Quem esqueceu Pinóquio, empregado do “coronel” Felinto Manso, e líder da bicharada? Detefon, Madame Sônia, a Cartomante, e “seu” Martins, modista e costureiro, professor de Clodovil?
E o mudo que era fresco (não confundir com o outro que cuidava do trânsito)? E eu ficava a imaginar como seria o orgasmo de um mudo fresco...
Por dez centavos dados por nós, Detefon, sacana todo, ia perguntar ao enfermeiro Cícero (que tinha mais raiva de viado do que era possível) se ele podia lhe aplicar uma “chibatosam nas nádegas”. E Cícero, à beira de um enfarte, gritava: “Não, viado filho da puta! E não é Chibatosan, é Phimatosam!” Ao que Detefon dizia: “Eu sei, Cicinho. É só frescura”. E tome perna, porque se Cícero o pega, estava praticado o primeiro viadicídio no nosso Grande Ponto.
Chegavam a Natal os primeiros sargentos da Aeronáutica, e, depois, mais e mais. Eram jovens cariocas recém saídos da escola de Sargentos da Aeronáutica, que vinham estagiar em Natal, e tomar nossas meninas, pois muitas provincianas se encantaram com a chiadeira da voz dos galãs, e nos deixavam a ver navios. Ou aviões? Ficamos praticamente na mão, sem matéria-prima, pois os cariocas monopolizaram o comércio amoroso. Nossas ações sofreram uma queda brutal na Bolsa de Amor e chegaram à proporção de cinco grandepontenses para um carioca, e, muitos deles, arrogantes diante da situação de mando de campo, tiveram que levar alguns tapas. Estabeleceu-se um clima de disputa no qual perdíamos no feminino, mas ganhávamos no tapa. Alguns deles se tornaram nossos amigos, como Rildo Gonçalves, lançado por mim em teatro, hoje ator e advogado em São Paulo, e Paulo Casals, que também ingressou no mundo artístico do Conjunto Teatral Potiguar, dirigido pelo saudoso Sandoval Wanderley, e, do qual, eu era integrante e diretor de cena. Mas a grande verdade é que aqueles meninos cariocas infernizaram a nossa vida amorosa, até que as tais provincianas descobriram que a única coisa que nos diferenciava era o sotaque, porque o resto era tudo igual, principalmente em tamanho e competência.

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