De repente se deu conta que no céu da Cidade não corria aviões. Helicópteros, outros artefatos modernos não existiam em sua paisagem. Porém, podia sentir o cheiro fresco da argamassa que fazia centenas de novos prédios. E embora a modernidade já insinuada em suas ruas, tinha sensação de estar caminhando sobre uma bela paisagem. Podia sentir o cheiro do mar.
Inácio de Boiota era um grande artista de renome internacional. Paulista tinha conquistado o mundo. No seu currículo, nada menos que várias exposições no circuito obrigatório das artes contemporâneas: Fez a Kusthalle de Bâle, os museus de Grenoble e Chicago, o Beaubourg, o MOCA de Loa Angeles.
Sua obra: “o espirro do catarro” faz parte da Ludwing Collection.
Boiota é amigo de Téo Babelli (um megainvestidor) e teve um caso com a ex namorada do pintor Jackson Mollock. Apesar de todo esse currículo, estava enfadado de Nova York e gostou de uma cidade que viu através de um folder de promoção turística.
Estava em tempo de se aposentar. Curtir o resto de sua vida, gastar os milhões de dólares que tinha acumulado vendendo bandas de tijolos, esculturas de fumaça, telas em branco, etc...
Boiota desembarcou na Cidade para fazer uma revolução nas artes. Logo de início foi um paparico só. Não se falava em outra coisa. O único jornal da cidade, a tribuna da notícia, publicava na capa e no seu suplemento de cultura o “Tudo” infinitas matérias sobre Inácio de Boiota.
Mas isso foi só no começo. Passado alguns meses, tudo voltou à normalidade. Ele compreendeu bem, achou até exagerado aquele paparico todo. Pensou em conhecer os artistas do novo lugar.
Logo notou que não tinha artistas ali, pelo menos nas páginas das revistas e jornais, nunca leu. Vez por outra, um, ou outro acidente, aparecia.
Nos cadernos de cultura da Cidade, só se falava no passado. Eram matérias sobre a primeira ponte, o primeiro cinema, a primeira rapariga, o primeiro cabaré, o primeiro aviador. Era uma cidade que vivia do passado.
As revistas também seguiam a mesma regra editorial. Os suplementos oficiais, também. Até as publicações independentes, dos poetas, só falavam no passado. E até os muito poucos, ditos de vanguarda, também, só falavam do passado.
As revistas especializadas, de gastronomia, por exemplo, só falavam dos restaurantes do passado e dos pratos tradicionais.
Na Cidade, o presente não existia.
Soube que a cidade era berço de um grande folclorista, historiador e poeta brasileiro. Seria isso a causa de tamanha insanidade? Assim sendo, Era uma coisa sem volta.
“Onde eu fui me meter”, pensou Inácio. “Essa cidade morreu no tempo, não tem presente, portanto não tem futuro. E no futuro, não vai ter nem passado”. Ele deu um suspiro forte, puxou o ar com toda a força de seus pulmões sexagenários, viu que valia a pena uma última tentativa, ar como aquele nem o de Paris que costumava engarrafar e vender em suas exposições. Foi à luta, denovo.
Na Cidade tinha nove Shopping Center, e somente um jornal. Todo mundo era poeta, jornalista e historiador, mas nenhum museu de artes plásticas existia, nem de arte nenhuma, aliás, nem museu tinha.
Na cidade não podia fumar, nem sentar nas calçadas e nem falar dos artistas do momento.
Inácio começou a circular nos bares, na vida noturna, na underground em busca de artistas, que num contexto deste só poderiam estar marginalizados. Não encontrou nada. Chegou a conclusão que não tinha arte ali naquela cidade.
Milhares, centenas de folders, cartazes, panfletos chegavam até a mão de Inácio. Quando ia aos eventos, voltava puto com que via. Era a cidade do passado e do cartaz. “O que mais falta eu descobrir?”
Logo, o pesadelo de um mundo sem arte começou a habitar a casa de Boiota. Sua paranoia galopava galopes de um mustang, deixou de ver o noticiário da TV, os blogs da internet, tudo lembrava a Cidade do passado. O mundo sem arte. Ele acabou esquecendo quem era, o que foi. A última vez que foi visto, estava sobre uma jangada, lançando uma tarrafa na areia.
Franklin Serrão
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