"Tudo isso o tempo diluiu.
Mas a história ficou..."
Os processos de (re)urbanizações, sempre norteados pela falta de memória que nos assola, dilapidam o depauperado patrimônio arquitetônico. Escrevi um texto preocupado como o futuro do velho Pontilhão da Praça Augusto Severo - "uma ponte para o passado"? Dias depois, os matutinos destacaram o tombamento (literal) da Ponte do Salgado. Imaginem como o rei vassalo Cascudo narraria ato tão bestial e cruento com nossa já usurpada história.
Na minha infância ribeirinha-salesiana, a Ponte despertava um enigma profundo: ligava nada a bulhufas, coisa nenhuma a non-nada. Seria agora mero elemento de ligação entre os tempos de efêmeras lembranças?
Ponte viva! Em arqueologia urbana, in loco constatei-a soerguida (entre amontoados de entulhos). Revisitei Cascudo num ponteofício cronológico.
Assim descrita em 1603, a par da cidade, uma campina alagada pelas marés do Potengi. As águas lavavam os pés dos morros, onde se tomava o banho salgado. Terreno ensopado, pantanoso, enlodado. A corrente de água viva obriga a existência de uma Ponte, simples de tronco de árvore, transposto em equilíbrio instável.
Desaparecera em 1604, quando um tal de Bernardo da Costa, "ambicionou" ser útil: "no rio desta cidade não há passagem certa como algum tempo houve e ser tão necessária como era para o povo, se quer ele suplicante obrigar a dita passagem"; dando-se o sítio por quatro vidas com seus logradouros para cultivar e plantar o que lhe parecer...
Intermitente e teimosa, ao labor dos movimentos incessantes das marés, a Ponte volta a ser mencionada em 1633, justamente onde "continua estando".
Acordando da letargia dos três séculos inerte, no bairro da Ribeira de 1878, "o oceano espraiava-se sobre plantas rasteiras, ficando ali as águas estagnadas como uma vasa lodacenta. Um istmo unia a Ribeira à cidade Alta, através de uma Ponte por baixo da qual as águas do mar atravessam um canal e vão derramar-se em uma extensa superfície, banhadas de águas salobras". Lugar em que Odorico Pelinca, esperava à hora de acompanhar o entregador de pães, mergulhando, nas madrugadas de luar, n’água salgada das enchentes.
No governo de Tavares de Lira, o pântano colonial que dera nome à Ribeira foi enfrentado. Herculano Ramos realizou o aterro e ajardinamento da Augusto Severo, em junho de 1904, gastou 62:446$86, mas o lamaçal desapareceu. "Cercado de calçadas, o lodo salgado foi aterrado pela areia alva dos morros". Herculano repetiu a façanha do conde Maurício de Nassau, transplantando árvores adultas e transformando o recanto melancólico num parque tropical cheio de sombras acolhedoras, bancos confortáveis, Pontes toscas ("pequenas pontes de cimento armado que dão passagem sobre o estreito canal"), graciosas alamedas, logradouro indispensável para as cidades de clima quente, repouso para as amplas insolações.
Escabreado, o Príncipe do Tirol, vaticinou: "Esse parque, maravilhoso de justiça urbanística, foi sendo pouco a pouco guerreado e acabou no que esta praça banal. Mutilado e sem função é um lugar por onde se passa e nada sugere parar e descansar". Na Natal, "cidade do já teve", o desmando com o destino do patrimônio coletivo permanece secularmente inalterado.
Pontilhão à mercê dos poderosos, alheios à recordação citadina. Numa alegoria hilária e sarcástica, no ano da graça de 1923, Lucas da Costa, desvenda o contexto de vicissitudes oligárquicas, tecendo carapuças para os fiéis "Attachés" dos Albuquerque- Maranhão:
"Disfarçam os governos em administradores modelos, falando às massas como exemplos de democracias, com o fim de alcançarem confiança e conseqüente continuação dos viciosos regimes... Disfarçam os militares impatriotas em garantidores das deturpadas e insustentáveis situações políticas... Disfarçam os tiranos em generosos cavalheiros, doutrinando a bondade como se fossem legitimo cultores desta religião... Disfarçam os torpes sedutores da honra em gente de linha e hierarquia para terem entrada no lar da família e na larga porta da sociedade... Disfarçam os ignorados impulsos os cidadãos honrados em vagabundos e traficantes freqüentadores de recantos... Disfarçam os cretinos em baluartes da justiça para ditarem nobres princípios às almas essencialmente moralizadas. .. Disfarçam, enfim, os infelizes que passam pelas avenidas, de cabeças erguidas, faceiros, alegres, enquanto a farpa mais aguda lhes pene".
Insisto, contra a corja desmemoriada, é preciso ficar atento, e destemido, forte! Receio que os vaidosos canalhocratas da atualidade, cheios de si, tentem subtrair do horizonte a Fortaleza dos Magos Reis, com o objetivo fútil de desnudar a paisagem para ressaltar o designer da nova Ponte Newton Navarro. Reavivar no Exercício da Palavra (1975) de Zila Mamede: A Ponte
salto esculpido
sobre o vão
do espaço
em chão
de pedra e aço
onde não
permaneço
- passo.
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