Clara de Góes
Era uma vez um homem. Era uma vez o frio. Era uma vez um homem que tinha frio. Não. Era uma vez um homem que tinha medo de ter frio. Era uma vez um homem que sabia que tinha frio mas que não era ainda. Havia uma brecha.... uma brecha no tempo, uma espécie de defasagem... de tempo... no homem, no clima, na geografia. O frio viera antes das condições atmosféricas de temperatura e pressão. E ele sabia... sabia do frio. Do frio antes do tempo que começava nele... nos ossos dele. E o homem que era grande, o corpo coberto por abundantes camadas de gordura; o homem que era como um leão marinho, desses de livro, que se espreguiçam em icebergs como se fossem dunas... tinha frio. E o que pedia (ou perdia) o homem que tinha frio, que tinha medo de ter frio, e que sabia do frio que não era ainda? Casacos? Capotes? Couro? Lã? Não. Ele pedia um par de meias.
A família decidira. Era preciso mandar a encomenda. Atender aquele último pedido... um par de meias... um contato ainda depois da prisão e antes do exílio. Mas como? As embaixadas estavam vigiadas, quem entrava ficava marcado... Mas era preciso, um par de meias... E ele lá. Na embaixada do Uruguai, à espera de um par de meias. Alguém teve a idéia, uma visita. A visita da afilhada. É criança, o risco é menor. Ela vai, leva o par de meias, toma a bênção... mais uma vez. Quem sabe... isso não se sabia. Não se sabia mas se temia e ninguém dizia e foi mesmo, a última vez.
Decidiu-se. Ia a menina. Natural, que fosse ver o padrinho, se despedir.
A menina tinha oito anos, era franzina e já aprendera o frio. Carregava-o no bucho, nos ombros, no olhar... Ela não sabia, mas sentia. Ele sabia e antecipava. E eu fui. Ela que, naquele tempo, era eu, foi.
Ver o padrinho, o prefeito, levar-lhe um par de meias. Levar os recados, as recomendações de todos, se lembrar, não esquecer, trazer de volta, aos seus, um gesto dele, habitual... o jeito de coçar o queixo (mais a papada do que o queixo) com as costas dos dedos, um olhar... alguma coisa do homem imenso como um leão marinho que se espreguiçava em dunas... as dunas de Natal.
E era tanta coisa que ela devia levar e não se esquecer de lhe dizer, e não chorar, e lhe dar coragem, e tanta coisa e tão pequenos eram os ombrinhos dela, que ela se esqueceu de quase tudo. Esqueceu-se de olhar pra ele, de ter coragem, de dizer... do medo, do medo de ter medo, do medo de esquecer (quando esquecer era um jeito de trair), e ela chegou lá e fixou-se nas mãos. Alguma coisa a impedia de olhar nos olhos dele. Tinha medo do que podia ver, adivinhar, intuir, de ver fraqueza nele... nela. Então se fixou nas mãos. Prendeu-se nelas. Eram grandes e tombavam sobre os joelhos que eram largos. Ele estava de cabeça baixa, talvez porque ela fosse pequena e esse fosse o jeito de olhar pra ela, talvez por lhe pesarem os pensamentos, talvez de cansaço...
Ela acompanhou-o no gesto, no modo, na inclinação da cabeça, na vida que escorria pela brecha entre a geografia e a história daquele instante que seria o último, o último encontro de um leão marinho naufragado e uma menina cuja infância não veria o mar.
Nas mãos dele, a mãozinha dela tantas vezes se abrigara, se perdera, se encontrara. Nos comícios. Nas festas de São João. Nos palanques, nas danças, num gosto de povo com cheiro de intimidade que ele lhe deixara. “Meu padrinho”, ou, apenas, “padrinho”... era como um nome mágico, uma espécie de “Abre-te Sésamo” diante da vida, da cidade, da alegria... as bandeirinhas de São João, os acampamentos, e eu me sentindo tão importante, entregando prêmios, percorrendo as Rocas, “Brasília Teimosa”, as lavanderias do Alecrim... o Baldo... Esse povo pobre não deixa Djalma em paz, dizia minha avó. Esse povo pobre... e Djalma... no olho no furacão.
Um dia foi como se não fosse... a vida de perna pro ar, o mundo de ponta a cabeça... os soldados... as casas invadidas, as vidas reviradas, as prisões... o cheiro do medo, a valentia de uns a covardia de outros, a prova da vida e da dignidade nas costas. O povo pobre se findando, o mundo ficando de longe...
Djalma foi firme. Assumiu a responsabilidade por tudo... Seu padrinho foi preso... Djalma está incomunicável. Em Recife, a tortura come solta, o pau tá comendo. Tão sumindo com os camponeses. A tortura começou, vão mandar especialistas de Recife pra Natal... Um certo capitão Lacerda... Djalma está incomunicável. As visitas ao meu pai, o cheiro de mijo dos quartéis, a revista, o medo... menos que medo, espanto. Raiva difusa... solidão.
Djalma foi pra Fernando de Noronha. Botaram Luís Gonzaga num avião. É mesmo pra matar, o homem sofre do coração, dizia minha avó que procurava na rua com quem brigar. Meu avô chegou, o velho coronel viu a filha sair presa de casa. O velho coronel que não podia com o sargento... um sargento e um cabo levaram minha filha... Mailde foi presa! O velho não agüentou, morreu depois. Djalma está melhor... parece que tem banho de sol na ilha... outros estão chegando. Mas ele sabe, sabe... que vai demorar...
Depois... Djalma na embaixada rumo ao exílio no Uruguai. E as notícias que chegavam. Djalma não agüenta o exílio. Não se adapta de jeito nenhum. Só fala em Natal. Pede mangabas... a fruta das dunas... o meu leão marinho... Tem saudade do sol, da brisa, do Grande Ponto.
Djalma tem uma banca de jornal... vende jornais do Brasil... mas está cada vez mais calado. Só fala em Natal... quer voltar...
As frases ecoavam na casa, na família que se virava como podia em um exílio diferente mas ainda assim... exílio. As frases ecoavam em meu pai que se identificava com o amigo na saudade e no amor à cidade de Natal. As frases ecoavam na raiva incontida de minha mãe que amaldiçoava a cidade que ficara pra trás. A raiva dela e a nostalgia dele... e o meu silêncio... o desamparo. A lembrança dele começou a servir de corpo a outras saudades... Meu leão marinho era como Moby Dick, carregando em suas costas os naufrágios dos outros... cada um que sucumbia, aumentava a carga dele.
Minha mãe era um poço de raiva, meu pai de saudades... e na menina, que agora sabia do frio e entendia o desamparo das mãos dele sobre os joelhos largos. Tinha agora mais tempo de lembrança do que de vida vivida ao lado dele. Mas os naufrágios aumentavam e a lembrança dele crescia e de alguma forma o corpo imenso dele, carregava aquilo tudo. Assim, a presença dele crescia. Presença de silêncio entrecortada de notícias que não passavam de frases curtas, como que a escapar de nossos ouvidos, de nosso entendimento.
E ela pensava nele, no padrinho. Um dia, chegou um presente. Uma pequena bolsa de couro... que, se dizia, “de antílope!” , com solene importância. Aquilo causou espanto. Como é que num tempo daquele se cometia uma delicadeza daquelas! Com tanto sofrimento, tanta tristeza, tanto abandono e brutalidade... uma delicadeza daquelas... uma bolsinha de couro de Antílope para uma menina, uma afilhada entre tantas que o ex-prefeito devia ter... Mas era a filha do amigo... Clarinha...
E se repetia “De antílope”... E aquilo era pronunciado com solenidade: “de antílope!” como se fosse um nome próprio. E a menina correu à enciclopédia, ao dicionário à procura de antílopes... o que seria aquela palavra tão pomposa e importante... não tinha coragem de perguntar... A bolsa era pequena e macia. Foi guardada como se fora uma relíquia... e, de certa forma, era. O presente do padrinho que se reduzia, cada vez mais, a mãos desamparadas sobre os joelhos largos. Silêncio. E o enigma: ele pensava em mim? Devia pensar, pra mandar um presente... Eu tinha, então, uma existência além dos horizontes dessa língua, na qual, não mais me reconhecia? Aquele homem grande pensava na menina franzina , na afilhada, e lhe mandava, em silêncio, um presente.
Depois veio a notícia. O coração de Djalma não pôde mais. Sucumbiu. E meu pai repetia. Morreu só. Morreu só. E minha mãe respondia com a crueza de um desespero que ela mal podia reconhecer: “como sempre viveu”. Morreu como sempre viveu. Como um destino. Uma sina. Como se sempre... Mas... mas tinha o povo pobre... Esse povo pobre que não deixava Djalma em paz... teria, ele, o reconhecido por lá? A solidão dos homens... A febre no olhar....o choro de fome das crianças enlouquecendo as mães... o ventre das adolescentes vendidas nas estradas... Não se sabe.... Não se pôde perguntar... E ele não pôde dizer. Meu pai rezava e minha mãe calava a raiva surda no peito. Não chorava. Calava. Eu corri ao meu presente que vivia envolto no papel de seda em que chegara.
Desembrulhei-o e fiquei segurando minha pequena bolsa de antílope, como se fosse um nome próprio que eu recuperasse como uma herança... mas não tinha existência, a sua morte. Continuava, do mesmo jeito a presença dele... nas coisas, na lembrança de uma vida que ficara entre as bandeirinhas de São João. Não lhe era permitido morrer porque sua vida não tinha sido vivida até o fim. Tinha uma brecha... E o corpo dele não passava por ali... Não tinha jeito dele ir. O meu leão marinho que se espreguiçava nas dunas de Natal continuava. Eu o levava, mesmo assim... pequena e franzina, jogando em seu corpo branco os começos abortados de minha jovem vida... ele não cabia na brecha que a morte abria... não era um problema de alma, mas de corpo... portanto continuava vivo. Tinha que continuar!
E mesmo as notícias do enterro, as últimas humilhações... “não deixaram isso”, “não deixaram aquilo”; frases de sujeito indeterminado que indicavam o anonimato covarde das ordens que perpetuavam a injustiça, a mesquinharia, a ruindade comezinha das gentes... e o meu padrinho tão grande... imenso. Imenso e frágil... “o coração de Djalma não pôde mais”. É. Não pôde mais.
Agora vira ele praça e ponto de encontro, o Grande Ponto de que ele gostava e que era referência na cidade. É tempo de alegria e, quem sabe, tempo de reconciliação. Diria meu pai, em sua fé, o tempo do perdão. O Grande Ponto... Djalma Maranhão. Não sinto alegria. Procuro, em mim, sentimentos cristãos e não os encontro. É a herança que me cabe, a herança que reivindico e da qual não abro mão. Herança que não precisa de consangüinidade nem testamento escrito. Ela me foi mandada, em silêncio, numa bolsinha de antílope, do Uruguai.
Minha herança não é de família nem de partido, é herança de um destino partilhado... o destino do frio. Procuro, em mim, alegria ou sentimento triunfante de justiça finalmente feita e não encontro nada disso. Não vejo, em mim, a generosidade que, segundo dizem, ele tinha. Há o vazio dos que não voltaram. Dos corações que não puderam mais. Certas coisas não têm perdão nem volta. Minha herança, e não é fácil carregá-la, é dizer que eu não me esqueci. Que eu não perdoei. Que me doem ainda as frases e o tempo que me foi roubado, a convivência que me foi impossível... O destino abortado de uma geração não tem volta nem tem como apagar. O tempo não se recupera. E alguns não voltaram. Alguns não voltaram. E isso é imperdoável.
Sim, há o registro simbólico, o reconhecimento, o testemunho às gerações. Não me interessa. Seu corpo, de certa forma se transubstancia em praça pública e, finalmente, ele é entregue inteiramente à cidade cuja ausência o fez morrer. Inscrevem-no espaço público que era o que ele preferia. Para mim, não importa. O que me foi negado permanece... nada nem ninguém podem restituir
Não sei aonde foi parar depois de tantas mudanças e exílios, voluntários e involuntários, minha bolsinha de antílope. Carrego, no entanto, o peso das mãos desamparadas, dos pés nos chinelos, da cabeça baixa... do medo de cair no choro se o olhasse nos olhos, de vê-lo triste... o meu leão marinho arrastando pra longe a imensa carcaça que o coração não pôde suportar... mais.
Rio, 9 de novembro de 2002
domingo, 18 de outubro de 2009
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