terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Larico Pellado

Luís da Câmara Cascudo
Livro das Velhas Figuras

O bacharel Alarico José Furtado foi o quadragesimo Presidente do Rio Grande do Norte. Recebeu nomeação a 13 de Abril e desessete dias depois empossava-se solemnemente no alto posto. Corria o anno de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1880. Treze mezes depois largava o poleiro. Não fêz cousa alguma. Nem um beneficio. Nem uma machadada abrindo rua. Só deixou anedoctas.

Mudava de casa como de chapeu. Estava no casarão da Rua do Commercio, voava para o alquebrados. Paço da rua da Conceição, passava o ex- Vacca Amarella, sobrado graúdo que Olin tho José Meira começara a fazer e que é o actual Palacio. Não gostava de ninguem. Tudo era ruim, antigo, acanhado, imbecil. Uma cousa agradou Sua Excellencia. Aguardente com summo de cajú. O presente apreciavel nos seus olhos era uma cesta de cajú e umas garrafinhas de canna, da bôa, destilada em alambique de barro, canna bem branca, bem fina, com aljofre borbulhando feito champagne. O doutor Alarico ficava manso só em falar nisso.

Nos primeiros mezes andou recebendo presente que era um nunca acabar. Perús, gallinhas, patos, ganços, jacás de milho verde, melancias, mellões do Assú, mamão de encher a bocca d'agua, macacheiras grossas como coxas, batatas, inhames, corós. Sua Excellencia desprezou a comida da terra. Achava desemxabida. O doutor Alarico era homem mais circumspecto, mais grave, mais austero deste mundo.

Andava como se levasse o andor do Nosso Senhor dos Passos. Andava lento, majestoso, pisando como se tomasse conta do chão. Era uma creatura serissima. E malcreadissima. Nesse tempo inda não tinham dado nome a neurasthenia. Vestia-se de preto, casacão comprido, collete abotoado até o pescoço, collarinho grande, bem esticado, gravata negra, fininha, tesa como se estivesse pintada no gogó de Sua Excellencia. Magro, ossudo, esgalgado, narigudo, olhinhos de lambeôio, bigode de granadeiro, bocca de labios estreitos e apertados como abertura de mealheiro. Na cabeça um chapeu do tamanho duma chaminé. Tal era o 40° Presidente da Provincia do Rio Grande do Norte.

Este homem serio, sizudo, cheio de etiquetas e de sala-maleques, de proloquios e de latim meúdo, possuia uma cabelleira de poeta medieval, uma cabelleira basta, annelada, sedosa. Uma belleza. Quando sua Excelencia envergava o treze da gola, nos dias de rigor, ficava até bonito. A gola bordada à ouro escondia-se sob a caricia dos cabellos castanhos.

No dia 2 de dezembro de 1880 o povo, com banda de Musica, bandeira, soldado de linha, gente grande e pequena veio saudar, ritualmente, o senhor Presidente pelo anniversario de Sua Magestade o Imperador. A rua da Conceição ficou inchada de povo. O pateo do Palacio não cabia uma ponta de alfinete. O vento abria para os olhos enthusiastas o ouro-verde da bandeira desfaldada na varanda. Finalmente o supremo magistrado da Provincia, cercadinho de pessoas conspicuas e precipuas, appareceu para dar os três vivos da pragmatica. Recostou-se no balcão do sobrado, tirou o chapeu bicudo, estirou -o para baixo e bradou, esganisado, fanhoso, sizudo, - Viva S.M. e sr. D. Pedro II, Defensor Perpetuo e Imperador do Brasil! Viva nossa Santa Religião! Viva a Nação Brasileira!

A musica bateu o hymno. Aclamações, berros, vivas de puro amor patrio. Como a festa genethatica do Imperador fosse só aquillo, o povo prorrompeu em vivas ao Presidente. O doutor Alarico que enterrava o chapeu de dois biccos na cabeça, retirou-o e accenou. O viverio recrudescia. O presidente tonteado pelo sopro ardente da consagração popular começou a balançar a cabeça, agradecendo, agitando a mão esguia enluvada de branco. Os cabellos ondulavam ... E tanto viva foi urrado pelo povo e tanto o doutor Alarico mexeu a cabeça que a cabelleira, subito, desguardada, vôou para baixo. E na varanda, impassivel e mesureiro, o Presidente balançava um craneo nú, pontudo, brilhante, reluzente como ovo de avestruz.

Uma gargalhada espoucou seguida por recuo de Sua Excellencia, rubro e rapido, com as mãos na cabeça escalvada como o Morro Branco. Deram para chamal-o Alarico Pellado. Ou melhor, Larico Pellado. D'ahi em diante é que foi malcreação. Uma manhã perguntou por um sr. Chico Maria, funccionario da Secretaria. Responderam que não tinha chegado. O doutor Alarico enterrogava, bufando, os outros empregados.

- Eu vi, senhor sim. Seu Chico Maria estava tomando banho no Oitizeiro.

- Tomando banho no Oitizeiro? Um funccionario graduado, homem de familia? No Oitizeiro? Ajudante!

- Às ordens de V. Excia!

- Vá buscar Chico Maria neste tal de Oitizeiro e metta-o na cadeia. Desafôro!

- Mas seu Presidente ...

- Não me diga nada! Metta o bicho na cadeia. Chico Maria esteve horas preso, na sala livre da cadeia, pelo crime de ter tomado banho no Oitizeiro.

Uma noite alta o doutor Alarico accordou, levantou-se, vestiu-se e mandou buscar o ajudante de ordens. Mal este surgiu, declarou-lhe que desejava fazer uma ronda. Natal parecia um cemiterio.

Sahiram batendo as calçadas e pedras soltas.

Na treva o clarão dos vagos lampeões sangrava. Foram parar na Capitania dos portos. O Presidente, sorrateiro, collava o ouvido nas portas. De repente uma cachorrada furiosa surdiu do quintal e pegou-se às pernas do curioso dirigente. E o doutor Alarico correu como veado, saltando poças e mattapastos perseguido pela matilha.

Pela manhã pediu o comparecimento do capitão do Porto.

- Mandei-o chamar para lhe dizer que o senhor deve mandar matar todos aquelles cachorros.

- Por que, senhor Presidente?

- Isto aqui não é fazenda de criar boi. Mande matar os cães.

O capitão matou os cachorros.

Uma tarde encontrou-se no quintal do Presidente um papagaio lindo. Levado para sala, tratado a pirão de leite, o loiro ficou quieto, sem soltar um pio. Manhazinha o doutor Alarico, grave e serio, duro como um varapau, veio ver o passaro.
- Meu louro! Dê cá o pé! Papagaio real... E o bicho calado.

- Curupâpâco, pâpâco, ecô, ecô ... E o papagaio mudo.

O doutor Alarico perdeu a paciencia. Levantou a mão e soltou-a no bicco da ave silenciosa. Num vôo pezado e baixo o passaro atravessou a sala, passou a janella, subiu a copa das arvores esgalhadas. E de lá, tranquillo, seguro do sucesso, rodando os olhos cinzentos, arrufando a pennagem verde, estalou silaba por silaba:

- Larico Pellado! Larico Pellado!

Sua Excia partiu como uma bala, de bastão no punho, seguido de servos, procurando apear o gritador. Esvoaçando acima do alarido e da ameaça, o louro continuava.

- Larico Pellado!

E assim falou, teimoso, sereno, ininterrupto, desprezando os gestos bravios da famulagem e os berros doidos do Presidente.

- Larico Pellado!

Até que se resolveu viajar. Vôou longe, calmo, reunindo e proclamando a voz despersa do povo, face-a-face ao dr. Alarico José Furtado, vingando a multidão humilde no sarcasmo do ephitheto.

- Larico Pellado! Larico Pellado!

Desapareceu gritando o nome. Tinha desafrontado os natalenses.

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