segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

GUERRA DOS CARIRIS

Luís da Câmara Cascudo

Quando terminou a guerra de expulsão dos holandeses, a Capitania era uma ruína. Raros moradores, casas desmoronadas, campos inutilizados, gado desaparecido, caminhos intransitáveis e, acima de tudo, as reservas morais esgotadas pelo sofrimento, o pavor e o receio da tortura e da morte. Depois de 1654 começa um período de convalescença geral. O enfermeiro da terra e da gente é o Capitão-Mor Antônio Vaz Gondim, administrando de 1654 a 1663 e de 1673 a 1677, treze anos ao todo. Os dois trabalhos mais urgentes, além da recondução de colonos, nomeação de autoridades, reconstrução de moradas, eram o Forte, meio no chão, e a Matriz que foi arrasada. Vaz Gondim conseguiu trazer cento e cinqüenta colonos para a Capitania e multiplicou-se no esforço para atender a tudo. Estradas, Forte, Matriz, casas, colonos, gado, segurança, guarnição militar, renovação dos Terços, disciplina, Vaz Gondim fez milagres de energia, operosidade e animação.

De 1685 passava pela cidade renascida um rumor de guerra, cheiro de fumaça acre de carne queimada, de sangue e de terra molhada. O sertão do oeste, a partir do vale do Assu onde as casas de taipa guardavam os primeiros currais de gado. Os indígenas estavam atacando, armados de mosquetes ou usando as velhas armas tradicionais. Atacando as residências. Matando, incendiando. O gado, orgulho do colono branco e mestiço, era peça de caça para o indígena. Onde o via, derrubava-o como a uma paca ou a um veado. Assava e comia. Mistérios apareciam. Quem dera armas aos indígenas? Nunca se soube. Navios corsários rondavam as costas da Capitania, especialmente na confrontação do delta assuense. Podiam ter enviado armas aos indígenas. Que interesse teriam esses corsários na desorganização da vida rural no nordeste brasileiro? Que corsários seriam esses, apresando navios, agredindo as sumacas e as barcas costeiras? Nunca se soube.

Dois outros elementos pesavam, empurrando o indígena para a violência. Os holandeses haviam tratado maravilhosamente aos indígenas e estes, partidos os amigos, estavam saudosos e desesperados da ausência. Os colonos, na cidade e nos campos, careciam de braços para o trabalho desbravador e conservador das terras. Era terra de mais e gente de menos. O recurso, fatal e bruto, era escravizar o indígena. Os jesuítas haviam, com a grande voz luminosa do padre Antonio Vieira, erguido uma defesa furiosa. Havia prestígio pessoal de Vieira junto ao Rei. As Cartas Reais proibiam a escravidão pura e simples pela apreensão. Os colonos, pelos seus letrados, conseguiram fórmulas jurídicas e capciosas de ludibriar a lei. A fórmula era prender o indígena na guerra-justa. Guerra justa era a guerra decretada pela autoridade real (delegada) contra indígenas insubmissos ou assaltantes. O prisioneiro em guerra-justa era escravo. Os colonos tinham esse remédio. Excitavam, riscavam, estimulavam o indígena até que este perdesse a calma e atacasse. Então o colono gritava que os bárbaros estavam acabando com o mundo inteiro. Decretava o Governador Geral, ou Capitão-Mor autorizado, a guerra justa e o colono, com os soldados, ia defender-se, assaltando, matando, escravizando, escravizando, escravizando ...

Essa é a guerra dos cariris porque esses indígenas foram as vítimas e algozes durante mais de dez anos de suicídio desesperado. Não é a história da cidade mas esta ficou no meio do incêndio estalante.

Os cariris, indígenas de cabeça chata, silenciosos (cariri quer dizer calado, taciturno) foram grandes aliados dos holandeses, n'algumas tribos como os janduís. Correspondem esses cariris, sob vários aspectos, aos Tapuias que nunca existiram antropologicamente, sendo apenas nome dado pelos tupis aos seus inimigos do interior. Os cariris dividem-se em cento de tribos, com denominações especiais. Quase todas essas tribos, paiacus, icós, caratiús, pegas, caicós, panatis, janduís, etc. Todos esses indígenas atacaram, como obedecendo a um plano estabelecido, desde o Jaguaribe até o sertão paraibano. Não conto esta guerra, com sua difusa e confusa bibliografia sangrando de brutalidade registada. A história além dos limites urbanos da cidade.

Teve a cidade seus contrachoques, os choques de retorno.

Viveu alarmada. Grupos indígenas vinham ao Ceará-Mirim e mesmo ao Ferreiro Torto, depredando. As tropas chegavam por todos os lados, negros de Henrique Dias, indígenas de Felipe Camarão, Terços dos paulistas, voluntários, criminosos perdoados se matassem insurrectos, todos iam para a ribeira do Assu onde o fogo subia como numa coivara. Mas o Governo Geral esquecia-se sempre de mandar alimentar os soldados, fornecendo-Ihes farinha e paga. Os colonos sustentavam as tropas por três, cinco, seis meses, sem jamais receber pagamento. Depois não podiam mais. Os soldados desertavam e o cariri avançava, jarretando os bois, destruindo toda a coisa viva...

O Senado da Câmara mandou um enviado ao seu colega de Olinda e ao Governador Geral, expondo e sugerindo planos. Não havia quase rendimento porque a vida estava absorvida na batalha. Em janeiro de 1688 o Senado da Câmara declarou considerar a Capitania em perigo de ser abandonada pelos colonos, ficando entregue aos bárbaros. O Capitão-Mor, que vivia dentro do Forte, sem maneira de agir, baixou edital, em 18 de janeiro de 1689, ameaçando meter na casa escura do Santos Reis e confiscar a fazenda de quem se ausentasse sem licença. Esse valente se chamava Pascoal Gonçalves de Carvalho. Seu sucessor, Agostinho César de Andrade, cunhado de João Fernandes Vieira, o chefe da campanha contra o holandês, afirmou que, ao "assumir a Capitania achei o capitão-mor dela, a quem sucedi, metido na fortaleza sem ter voz altiva para nenhuma disposição; achei os moradores recolhidos nas casas fortes e o gentio sem oposição, destruindo tudo".

Esse Agostinho César enfrentou, militarmente, o indígena, batendo os arredores da cidade, organizando tropas em Mipibu, afastando o perigo maior. O Senado da Câmara mandou o capitão Gonçalo da Costa Faleiro a Lisboa, com um memorial de 2 de julho de 1689, gritando aos ouvidos del-rei D. Pedro II que os indígenas tinham morto a duzentos homens, trinta mil cabeças de gado grosso e mais de mil cavalgaduras, além da destruição de lavouras com mantimentos inapreciáveis. Pedia, entre outros remédios, que o Ouvidor não fizesse a visita costumeira porque exigia 32$000 de aposentadoria (hospedagem) e que prendera o procurador do Conselho porque o homem não possuía os 32$ para lhos dar. O essencial era não pactuar com a indiada. A tranqüilidade que restabeleceria o trabalho dos campos "só se conseguirá estroindo-se este gentio, e guerreando-se com ele até de todo se acabar" ...

E voltaram à presença de Sua Majestade em julho de 1694 mostrando a guerra implacável, as forças que vinham de Pernambuco, chegando exaustas e sem mantimentos, as pagas nunca satisfeitas, a deserção como legítima defesa e "as duas tropas dos paulistas que vieram a esta conquista se têm tornado sem efeito algum, servindo a sua vinda de maior dano a estes perseguidos moradores". Duas vezes o grande sertanista Domingos Jorge Velho viera ao sertão do Assu sem conseqüências modificadoras da guerra. Dava, apanhava, ia-se embora, pensando no quilombo dos Palmares que finalmente destruiu.

O Senado da Câmara tivera gestos heróicos. Um deles, em vereação de 2 de dezembro de 1687, notando o pouco fervor com que agia o Capitão-Mor (Pascoal Gonçalves de Carvalho) acordava seguir em pessoal com aqueles que o quisessem acompanhar a bater os bárbaros.

Em princípios de 1695 (nomeado a 8 de janeiro) assumiu a governança da Capitania Bernardo Vieira de Melo, o último Capitão-Mor do século XVII e o primeiro do século XVIII. Com ele a guerra dos cariris amainou. Fundou o arraial de N. Sra. dos Prazeres do Assu em 24 de abril de 1696. É a velocidade inicial da cidade do Assu. Fortificou-os com soldados, nomeando Teodósio da Rocha por capitão. Ficou dois meses no Assu espalhando providências. Tal foi sua atividade que o Senado da Câmara solicitou ao Rei a recondução de Vieira de Melo no posto. O Rei mandou-o ficar mais três anos. Os janduís estavam aldeados no Assu. O paiacus, no Apodi. Outras aldeias abrigavam o que restava das tribos ferozes. A vida retomava o curso sereno e normal.

A cidade crescia lentamente. Árvores altas e fortes ainda cercavam o platô no sítio da rua Grande. Água, bebia-se no Baldo e o sino da Matriz marcava a hora da ceia, com as três badaladas da Trindade. Vésper subia no horizonte, com doce luz melancólica. Chamavam-na Papa Ceia pela correspondência com a hora da última manducação do dia.

O Alvará-em-forma-de-lei de 23 de setembro de 1700 mandava dar a cada missão onde viviam os indígenas, proclamados vassalos del Rei, uma légua quadrada e demarcada. O dono de toda a terra findava com a légua para viver e morrer. Esta mesmo lhe seria arrebatada, aos pedacinhos, pela voracidade dos civilizados.

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