terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A cal que me guardas

Neuza Margarida Nunes


Meus pensamentos já não cabem nas teias da razão. Antoniel Campos

Armarei ciladas na noite de hoje. É pré-carnaval e na Ribeira uma banda toca. Ensaia, como se fora para aprisionar almas; como se fora para propor infernos.

Preparo meu corpo para uma noite suja de intenções.

Não me comparo a nada: despi de qualquer razão os meus atos. Já não sou afeto: sou carne.

Ardem em mim, consentimentos de ontem, quando fui menina e muitas vezes presa; alimento de luxúrias que não ficaram em mim. Nem em quem de mim fez pasto.

Hoje sou quem tarrafeio. Conheço os cardumes em busca de alimento; faço pescarias com anzóis de encantos mágicos perfumados.

Se hão de censurar-me, censuro-os eu na liberdade que proponho.

Lagos não me satisfazem. Apesar da imensidade, oceanos também repousam em limites: quero a ousadia da água que corre; a ousadia do obstáculo proposto.

Vencê-lo-ei sempre, sou rio: barragens não aplacam a minha fúria. Por isso previnem-se em comportas.

Estou ladeira abaixo e trilhos não sigo: tenho o peso dos comboios de minha idade. Nada me freia nem me conduz. Nem mais sou condutora de mim: sou deriva; Titanic a buscar icebergs.

Se estou louca, não sei. Não me importa a razão.

Não me quero fardo nem arrumo trouxas para viagens frugais: a roupa que visto basta-me como mortalha.

Não quero fantasia. Só me proponho ser coveira num carnaval de entregas: enquanto.

Do pó da cal que me guardas, quero apenas o sal que uso de tua carne.


Barro Vermelho, Natal/RN, 25 de Janeiro de 2005
Com medo de mim mesma

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