terça-feira, 22 de setembro de 2009

SERTÃO DE ESPINHO E FLOR, de OTONIEL MENEZES

(Prefácio da Primeira Edição, 1952)*



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ECCE...


Otoniel Menezes, natalense, acompanhou o Pai ao Sertão e lá se fez rapaz. Ficou emocionalmente sertanejo. Todas as impressões subseqüentes foram impostas na primitiva chapa infantil, já cheia de imagens vivas, nítidas, secas, sugestivas, água-forte que se denuncia, olhada contra o sol, como um desenho de tinta simpática, inconfundível, atravessando a massa das anotações posteriores.
Com seu primeiro livro, “GÉRMEN”, logo depois dos vinte anos, e “JARDIM TROPICAL”, antes dos trinta, Otoniel, tanto mais alto sobe à luminosidade do seu dia vital, mais se aproxima da paisagem inicial de sua infância, figuras e almas, quadros e evocações imperecíveis, como gravadas na pedra branca dos serrotes, onde espreitou a corrida macia dos mocós.
Vivendo na cidade, como um exilado, incompreendido e incompreendendo, sozinho, arredio, orgulhoso na sua pobreza como Barbey d’Aurevilly(1) nas alturas de sua mansarda, Otoniel ouviu o coração cantar a história velha da primeira emoção.
Dizem que as conchas marinhas guardam nas curvas da voluta o rumor amplo de todas as vagas do mar alto. Heredia(2) falara a uma concha:
“ Longue et desesperée,
en toi gémit toujours la grande voix des mers”
Essa voz doce e fiel ressuscitou o mundo de outrora, o horizonte do Sertão, para o poeta. Todos os elementos desceram, como rios cantantes, para o estuário de um livro de versos.
Os sertanejos que residem distante da terra ardente que lhes deixou nos olhos a reverberação cegadora dos mormaços, o candelabro dos cardeiros imóveis recortados no azul da imensidão, o pereiro verde, o paudarqueiro estrelado de flores de ouro, o gado lento, a tarde silenciosa interrompida pela ondulação melancólica do aboio, vejam com que adamantina transparência a saudade gravou na memória miraculosa do Poeta todos os aspectos, vocabulários e visões, fazendo-os vivos e presentes numa desfilada impressionante de beleza, de naturalidade e de graça espiritual.
Em Montfort-l’Amaury (Seine-et-Oise), há anualmente a festa dos Bretões que moram em Paris. Montfort pertenceu ao apanágio dos Duques da Bretanha, até que a província se reuniu à França, com o casamento de Ana da Bretanha com o Delfim Carlos, o futuro Carlos VIII. E, enviuvando, casou com Luis XII. Não podendo deixar a cidade tentacular e voltar a ouvir o biniou, atravessando la lande, la lande para o Perdão de Santana d’Auray, os Bretões se reúnem em Montfort-l‘Amaury e revivem a terra longínqua.
Charles Le Goffie(3), saudando os patrícios bretões no Pardon de la Reine Anne, vindos de Paris para rever a Bretanha, disse:

Levez-vous! C’est aujourd’hui fête,
ó fronts courbés par la défaite,
ó coeurs abreuvés de degoùts.
Puisque, rivés à votre bagne,
vous n’alliez pas à la Brétagne,
la Bretagne est venue à vous !

Todo o Sertão – como o gigante das Mil e Uma Noites coube no bojo de uma garrafa de cristal – está inteiro neste livro, prisioneiro do poder poético que tudo arrebatou, árvores e vaqueiros, serras e gados, várzeas, tabuleiros, silêncios doces,frêmitos do meio-dia, tardes de contemplação, noites de estrelas vivas:

Sertão selvagem de Euclydes!
prosaicamente progrides,
mas, nada te corrompeu!
Paraíso de minha infância,
ingênuo como uma estância
de Casimiro de Abreu(4)!

Touceira de xiquexique,
cercadão de pau-a-pique,
dez léguas de tombador...
Mar de panasco dourado,
bogari, cravo encarnado
- SERTÃO DE ESPINHO E DE FLOR!

Mantendo o ritmo tradicional e secular do setissílabo, gênio do idioma, molde popular, na fórmula AABCCB(5), de notável formosura em sua simplicidade, o Poeta realizou o poema do Sertão vivo, em rimas naturais, rápidas, inesgotáveis, espelhando em pormenor e conjunto, psicologia, crítica social, etnografia, folclore, com o conhecimento infinito de fauna e flora, costumes, modismos, o próprio mecanismo do raciocínio; precisando, de maneira impecável e feliz, uma sucessão de frases e de imagens que fotografam, sem retoque e sem pose, o Sertão, com seus espinhos e suas flores:

Ah! Quem me dera, o tesouro
da lira mágica, de ouro,
que Apolo(6) deu a Anfion(7)!
Desses penhascos da serra,
te ergueria, oh minha terra,
portentoso panteon!

Rente às nuvens, o idealizo:
vaqueiros, de pé, no friso,
e um joazeiro, o coruchéu
- emblema das tuas dores,
verde, entre espinhos e flores,
bebendo a chuva - no Céu!

Um dos primeiros monumentos aí está, feito com sonho, sofrimento e talento vivo, neste poema ímpar pela sua força expressiva, intensidade lírica, grandeza emocional e abaladora dos corações que batam na cadência do solidarismo humano.
O terceiro livro de Otoniel Menezes, um poeta dos maiores do Brasil, fecha um ciclo de inapagável repercussão intelectual. É um poema fiel à terra, e sem as convenções de qualquer coloração suspeita ao ambiente que transportou para o livro. É um Sertão viril, resistindo, atravessando a pedra para encontrar água, cavando o açude, emigrando ou não emigrando, mas possuindo um bom humor natural, um rico filão inesgotável de filosofia compreensiva, explicando cataclismos e injustiças, com o inesperado de uma comparação espontânea, de inacreditável verismo pictórico, de rara felicidade ao ajustar-se à figura causadora do malefício coletivo.
Otoniel Menezes, testemunha presencial de vaquejadas e feiras, jornadas nos comboios que a madrinha(8) dirige com o sonido de sua campainha cristalina; sabedor de segredos e do ambiente exato e completo, não angulou as fisionomias para os efeitos de uma tragédia perpétua, nem as caricaturou para a representação nos programas “caipiras” de palco e de rádio, longe da justiça e da lógica.
Esses sertanejos são os que conheci, com quem convivi, sem deformação e sem amplitudes sentimentais de mentira livresca.
Um grande livro, espelhante de verdade, de indignação sagrada, de evocação maravilhosa e feliz, cores de todas as nuanças, dos afrescos às aquarelas que adoçam a vista; como certas melodias velhas, que ouvimos crianças, renovam a mocidade interior pela rearticulação sonora.
Um livro inteiro feito com homens, batalhas, trabalhos, esperanças, material humano.
Como para os poemas de Walt Whitman(9), quem tocar esse livro abraça todo um povo...


LUIS DA CÂMARA CASCUDO(10)



Notas por Laélio Ferreira:

[1] Escritor francês, normando (1808-1889).
[2] José Maria de Herédia, poeta parnasiano francês nascido em Cuba. Publicou um único livro: "Les trophées" (1842-1905).
[3] Poeta e acadêmico francês.
[4] Casimiro José Marques de Abreu., poeta, nasceu em Barra de São João, RJ, em 4 de janeiro de 1839, e faleceu em Nova Friburgo, RJ, em 18 de outubro de 1860.
[5] Sextilha, estrofe de seis (06) versos, com as rimas dispostas na fórmula citada.
[6] Filho de Júpiter e de Latona, deus solar, condutor das musas. Seu oráculo, em Delfos, era o mais famoso da Grécia.
[7] Filho de Júpiter e de Antíope, poeta e músico, construiu os muros de Tebas. Segundo a fábula, as pedras se dispunham por si próprias ao som da lira.
[8] Vide. Notas ao Canto.....
[9] Poeta, jornalista e ativista social americano (1818-1892). Uma das grandes admirações de OM.
[10] Escritor, advogado, professor, jornalista, historiador, etnógrafo, sociólogo, folclorista, orador, boêmio, conversador admirável. Poeta bissexto e o maior nome das letras do Rio Grande do Norte, no cenário nacional. (Natal-RN, 30/12/1898 – Natal-RN, 30/07/1986). Contemporâneo e amigo de OM, chamava-o, carinhosamente, de “Titó”. “Cascudinho”, para Otoniel.

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