Uma viagem no tempo. A madrugada de Natal, que ressuscita minha infância e os deslumbramentos alimentados pela percepção e imaginação de uma criança. Tudo era gigantesco: as arvores, as praças, as ruas e avenidas, as casas de alpendres e as calçadas, as igrejas e os sobrados. A cidade exalava um perfume inconfundível, peculiar e extasiante. Mistura de aromas de jasmim, margarida, dália, alecrim e do inebriante eucalipto. Em esquinas de todos os bairros, estrategicamente, vendedores de frutas incorporavam ao odor desse pomar, que envolvia a cidade, o cheiro do caju, da manga, da jaboticaba, da goiaba, da laranja cravo (agora chamada de tangerina), do sapoti e tantas outras frutas que compunham a dieta dos natalenses. Sem distinção de categoria social. Havia partilha comum de uma forma de viver.
O "grande ponto" na Avenida João Pessoa, a Praça Augusto Severo e seu estilo "belle époque", suas arvores, que pareciam espetar o infinito, a Avenida Tavares de Lyra, o cais onde aportavam a lancha de Luiz Romão e os botes que transportavam moradores e veranistas para a Redinha, a rua Dr. Barata e seu comércio tradicional, que resistiu até pouco tempo, a visão do Baldo e da subida para o Alecrim, a majestade da imagem de São Pedro no pináculo da igreja que lhe é consagrada, a antiga Praça "Gentil Ferreira", a eterna postura do rio Potengy debruçado sobre o mar, o Forte, as praias e as dunas como eram na minha infância. Tirol e Petrópolis eram especiais porque se revelavam diferentes. Bucólicos e muito mais serenos. De manhã cedo, uma espécie de névoa, fina e fria, adornava-os, mantendo nas folhas e nas flores a umidade de um orvalho que resistia até o domínio esplendoroso do sol. Mas os morros, que ainda hoje cercam a cidade, apesar da criminosa e estúpida devastação, conferiam, naquela época, aos arredores desses bairros, uma roupagem paradisíaca, fantasiosa e enigmática.
Tudo mudou muito rapidamente. A mudança não quer dizer retrocesso, atraso, descontinuidade, esquecimento. Ou revogação inapelável do ontem. Essa incursão sentimental é nostálgica quanto ao passado. Esqueceram, muito mais do que a beleza e a ternura românticas da cidade, o mais importante, insubstituível como civilização: a dimensão humana de cada um e de todos. Fragilizaram-se laços humanos antíteses de egoísmos, violências, mesquinharias, hipocrisias, cinismo, insensatez e insegurança que, infelizmente, predominam em âmbito social. Onde falhamos? Por que nos recusamos a reconhecer a trágica circunstância de que a cidade é submetida a um processo de inevitável despersonalização? Há um fenômeno universal em curso. É verdade. Mas nada impede que preservemos, apesar da "aldeia global", os vínculos com um passado fonte de humanidade, sentimentos e sonhos. Essência da alma da cidade.
As "Palavras de pórtico" de Fernando Pessoa revelam sentimentos que se hospedam na mente e no coração de todos os homens. Em qualquer lugar, cultura e ambiente. Especialmente quanto à dimensão da vida: "Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo". Esse conteúdo humano é a substância do presente que deve fecundar o futuro que sonhamos.
Cláudio Emerenciano
Tribuna do Norte, 30/10/05
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