Mar de Cecília, espelho sonoro
Viúva aos 34 anos, com três filhas para criar, a poeta maior do Brasil estava no mundo em um permanente e lúcido exercício de fuga, guardando o poder de sua poesia, sem se furtar a nada.
Foi na poesia, espelho da vida inteira, que Cecília Meireles deixou perdida a sua face. Como achá-la na leitura, se na sua criação é posta como enigma, pergunta, busca? Talvez de ouvido possamos resgatá-la, já que antes de tudo ela é sinfonia, cantata, quarteto de cordas, coral. Mas é impossível aprisioná-la nos olhos sem treino, identificá-la com o faro cego, enxergá-la com o tato morto. Mesmo que estivéssemos a pleno com os cinco sentidos, seria inútil tocá-la, já que aprendeu cedo a inventar ou descobrir mundos por meio da solidão e da proximidade com a morte. “Que mal faz esta cor fingida do meu cabelo, e do meu rosto, se tudo é tinta: o mundo, a vida, o contentamento, o desgosto?” (Mulher ao espelho)
Lá ela se recolheu, transparente como uma criatura das profundezas do mar, dessas que não se revelam e jamais vêm à tona, já que encerram em seus movimentos a comunhão de tudo o que vemos e que para ela são apenas ruínas. Sua missão é outra, não a de nos encantar ou exercer seu brilho. Se a deixássemos lá, onde se oculta de modo permanente, apesar de sua notoriedade, continuaria a mesma, a duelar com correntes marítimas vindas do magma e a buscar repouso em flores abandonadas. Ela quer nos dizer algo sobre o que somos, abismos. Poderemos, então, ser salvos de nós mesmos, passageiros potenciais de uma viagem à eternidade. “Longe, longe... Deus te guarde sobre o seu lado direito, como eu te guardava do outro, noite e dia, Amor-Perfeito” (Improviso do amor perfeito)
Serena e sonora, Cecília procura esse rosto que contraria todas as convenções, as personas que assumiu, formatado palavra por palavra, cevado na solidão de quem perdeu o pai antes de nascer, a mãe aos três anos, foi criada pela avó portuguesa e perdeu o marido suicida, que a deixou com três filhas. Cecília manteve-se no mundo irreal da vida prosaica, onde casou de novo, foi professora, pedagoga influente, autora de livros infantis e fundadora da primeira biblioteca especializada para crianças no Brasil. Mas seu território é a poesia, mar absoluto, espelho sonoro onde procuramos em vão sua identidade, guardada não num cofre, mas nesse movimento perene das águas, embalado pela mais alta música e inspirado nas raízes profundas da terra brasilis, a qual dedica todos os seus versos. “Em praias de indiferença navega o meu coração. Venho desde a adolescência na mesma navegação” (Constância do deserto).
Tudo na poeta maior é aparente. Sua entrega é, no fundo, condenação, sua alegria é projeção de uma tristeza infinita, seus laços são frágeis, feitos de vestidos, lágrimas, estrelas, ondas, ventos e verdades que ninguém aceita. Pelo menos não nesta vida, onde esquecemos de nos debruçar sobre as coisas, como faziam os antigos diante das amuradas, janelas, penhascos, gáveas. Somos bons em nos defender de acusações sobre comportamentos e hábitos, mas deixamos ao largo, passando indiferente, a necessidade de semear o coração com algo que não seja ruído inútil ou deserto. “Aqui está meu rosto verdadeiro, defronte do crepúsculo que não alcançaste. Abre o túmulo, e olha-me: dize-me qual de nós morreu mais?” (Canto 7 de Elegia).
Seu estar no mundo é um exercício permanente de fuga, promovido pela lucidez. A obra, que tem em Mar Absoluto e Retrato Natural, lançados em 1945 e 1949, respectivamente, uma síntese suprema, é teia tecida de enredar, seduzir e nos puxar para o fundo, lá onde mora a chama capaz de incendiar o espírito desabitado pela incúria do desconhecimento e da deslembrança. Os dois livros não cobrem a grande diversidade das manifestações do gênio da poeta nascida em 1901 e que se foi em 1964. Mas indica uma luz não para compreendê-la, mas para respeitá-la como fazemos diante das grandes tormentas, as que oferecem, antes da inundação, a face grave do calor e a leve agitação das folhas ainda desavisadas. “Passeio no gume de estradas tão graves que afligem o próprio inimigo. A mim, que me importam espécies de instantes, se existo infinita?” (Inscrição).
Podemos citá-la sem cessar, por décadas, e jamais chegaremos a um porto seguro, pois a cada abordagem nosso navio sente-se impulsionado para longe: “Rastro de flor e estrela, nuvem e mar. Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido: a sombra é que vai devagar”. Ler Cecília Meireles é evitar equívocos como o que vemos atualmente, em que se aposta na brutalidade das mensagens, a aridez das palavras, na pseudo-ousadia dos temas. Não existe nada mais radical sobre as mulheres do que seu grande poema Balada das dez bailarinas do cassino: “Andam as dez bailarinas sem voz, em redor das mesas. Há mãos sobre facas, dentes sobre flores e os charutos toldam as luzes acesas. Entre a música e dança escorre uma sedosa escada de vileza(...) Vão perpassando como dez múmias, as bailarinas fatigadas. Ramo de nardos inclinando flores azuis, brancas, verdes, douradas. Dez mães chorariam, se vissem as bailarinas de mãos dadas”.
Não é necessário uma só palavra pretensamente violenta. A violência vem da armação da poesia, do que se diz por meio de deslizamentos e sussurros, numa delicadeza que perdemos miseravelmente. Temos muitas justificativas para sermos brutos. Mas Cecília viveu duas grandes guerras e fala com serenidade tocante sobre a mortandade, construindo baladas para soldados mortos, para viúvas e mães que aguardam em súbito desespero. Ela viveu num mundo mais transtornado e confuso do que o nosso. Mas soube guardar o poder de sua poesia, sem se furtar a nada. Ela já tinha provado o sal das suas grandes perdas familiares, em que a morte da avó que a criou foi sua grande dor.
É quando ela chora sobre a pessoa querida que jaz à sua frente: “Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos. Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído. No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva, modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos. Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho; a mesma claridade da lua”.
Revisitar Cecília, navegá-la, relê-la, rememorar, comemorar novamente seu nascimento e sua obra, eis um evento fundamental para quem quer a alma ancorada em algo que nos sustenta e transcende. Temos fome de transcendência, nós, os deserdados desta terra. Precisamos do que possuímos de melhor, porque o tempo jamais decide ser mais ameno e existem poucas chances de recuperar o que perdemos. A trágica aventura da nação fez com que voltássemos as costas para o que pode nos salvar da tragédia.
Com Cecília talvez não encontremos seu rosto, submerso em tanta grandeza e talento. Mas podemos olhar pelo seu espelho, o poema sem mácula, e vê-la a sorrir seu desafio feito pólen, sua máscara múltipla, seus pertences girando na tarde que cai na montanha, onde as estrelas formam a margem prateada de uma revelação: “E este mar visível levanta para mim uma face espantosa. E retrai-se, ao dizer-me o que preciso. E é logo uma pequena concha fervilhante, nódoa líquida e instável, célula azul sumindo-se no reino de um outro mar: ah! Do Mar Absoluto.”
(Nei Duclós - jornalista e poeta)
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
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