Foto: Márcia Maia
Dunga e Plínio
O bar de Nazaré, nas adjacências do Beco da Lama, em Natal, estava lotado naquela tarde de sábado. Numa mesa, recitava-se poesia; noutra, cantava-se MPB; noutras, discutia-se política, etc.
Uma das mais barulhentas era ocupada pelos poetas Plínio Sanderson e Eduardo Alexandre, que perdia somente para a que era capitaneada pelo produtor cultural Dorian Lima, com o seu eterno “rosário” de queixas.
Plínio reclamava da instalação poética “Esgoto Sanitário”, montada por Eduardo durante as comemorações do Dia da Poesia, 14 de março, em protesto pelos esgotos sem tratamento que são jogados nas praias de Natal, cotidianamente. Idiota e imbecil eram as palavras mais ouvidas naquele final de tarde. Plínio bradava:
— Essa idéia é minha, imbecil! Você roubou e vendeu para a mídia como se fosse sua!
— Como sua, idiota? – retrucava Eduardo – Por que então você não foi fazer? Você é preguiçoso, tanto que jamais quis assumir integralmente a diretoria cultural da SAMBA (Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências).
Espumando de raiva e com os olhos absurdamente arregalados, Plínio gritava:
— Não assumi para valer porque você é um ditadorzinho de meia tigela, que quer fazer tudo do seu jeito e não aceita interferência nenhuma.
— Eu não sou ditador. Desde o tempo da “Galeria do Povo” que sou democrático em tudo. Agora, se ninguém vem ajudar, eu faço sozinho mesmo e pronto!
Aí, Plínio arretou-se e especulou pegando pesado:
— Eu desconfio que no tempo da “Galeria do Povo” você era financiado pela ditadura! Se não, como é que você nunca foi perseguido ou preso, com tantas palavras de ordem? Provavelmente era um esquema para juntar todo mundo num lugar só e dar a impressão de que estava tudo bem com as liberdades individuais. Você é um reacionário!
A peleja parecia que não ia acabar nunca. Parava apenas quando chegavam os eternos conhecidos para pedir cigarros ou dinheiro para tomar umas. Teve até uns momentos em que a conversa tomou outros rumos. Na verdade, Plínio admirava a pintura de Eduardo, que também admirava a poesia de Plínio. Eram grandes amigos, embora, para um observador novo, parecessem inimigos.
De longe, o poeta Helmut Cândido subia a rua Coronel Cascudo, bem ao lado do Museu Café Filho. Vinha ligeiro, com as mãos nos bolsos e o eterno cigarro pendurado nos lábios. Chegou pálido e estranhamente não pediu bebida nem cigarro a ninguém, indo direto para a mesa dos brigões. Arrumou-se junto ao ouvido de Eduardo e cochichou. Depois, saiu em direção à avenida Rio Branco. Todos notaram o estranho comportamento de Helmut e ficaram prestando atenção.
Plínio perguntou:
— O que é que Helmut queria?
Eduardo respondeu rindo muito:
— Nada, apenas veio me avisar que vinha de ônibus lá da Ribeira e que havia visto uma tsunami subindo o rio Potengi. Depois, virou-se para Helmut, que já estava uns cem metros longe e gritou:
— Não foi, Helmut?
— Foi! E agora mesmo vou parar os ônibus na avenida Rio Branco e mandar todo mundo na direção de Lagoa Nova. Vou salvar Natal!
Dorian Lima levantou-se para fazer um discurso contra a mentira do poeta. Levantou os braços na direção do Palácio da Cultura e, de boca aberta, emudeceu. Todo mundo virou-se. A tsunami havia chegado.
Minutos depois, numa fila interminável sobre brancas nuvens, a dupla continuava a discussão. Plínio acusava:
— Está vendo? Se eu tivesse ido para casa não tinha morrido. E logo com você!
Eduardo divertia-se:
— Agora agüente!
— Eu não entendo porque estou na fila do céu. Eu nem acreditava em Deus, nunca tive fé... Reclamava Plínio.
— É mesmo, emendou Eduardo, cadê Chagas, Osvaldo, Karl, Laélio, Léo, Nazaré, Paulinho...?
Uma mulher que estava na fila e que ouvia a conversa, intrometeu-se:
— Meninos, fé, no céu, é como plano de saúde na terra: quem tem, passa na frente. Seus amigos já estão por lá. A essa altura, já estavam na entrada: eram os primeiros de uma fila que dobrava duas esquinas de nuvens, sendo recebidos por um elegante senhor que chamava a atenção pela serenidade. Este interpelou os dois:
— Então? Vamos entrar?
Plínio fez sinal de tempo com a mão e cochichou no ouvido de Dunga:
— Vamos ficar unidos. Vamos saber direito como as coisas funcionam por aqui. Deixe que eu conduzo a conversa. Dunga balançou a cabeça, concordando. Ele então começou:
— Amigo, como é seu nome mesmo?
— Pedro, às suas ordens.
— Aí tem meladinha?
— Não entendi...
— Cachaça, limão e mel. Tudo misturado...
— Não.
— Tem “Cuba Libre”?
— Não.
— Tem, ao menos, um beco?
— Não.
— Posso continuar minhas discussões com Eduardo?
— Não, aqui tudo é na base da paz e do amor.
— Pois me diga onde é o elevador.
Leonardo Sodré
Quarta-feira, Maio 11, 2005
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