quinta-feira, 17 de março de 2011

Pela esquina do continente


UM PASSEIO UNDERGROUND 
PELA ESQUINA DO CONTINENTE
Filipe Mamede

Palumbo, 11
Carta do Editor
Os muros baixos não impediram Natal de ouvir o grito de uma juventude rebelde, seguidores de Marcuse, clientes de Timothy Leary, influenciados pela porralouquice colorida de Andy Warhol e leitores de Allen Ginsberg e Jack Kerouac. Eram rebeldes com causas, muitas causas, consequências e inconsequências. Chacoalharam o mundo e misturaram música, literatura, teatro, cinema, artes plásticas e LSD em uma confluência apaixonada e angustiante. O momento pedia adrenalina, criatividade, entrega. A intenção era mudar o mundo pela transgressão artística e novas estéticas. Quem sabe pintar o céu pelas mãos da pop art? Soaria moderno ainda. Ora, o mundo ainda é figurativo e escravo do consumo! Mas vivemos o momento da contrarrevolução, do empobrecimento cultural. E aquele passado psicodélico ficou para trás.
O yeah, yeah, yeah cantava o amor quando o Brasil ficou submerso na ditadura e na esperança de Geraldo Vandré: nas “flores vencendo canhões”. E meio século se passou. Foi em janeiro de 1961 quando Robert Allen Zimmerman bradou seus primeiros versos folks lá com a alcunha de Bob Dylan. Dois anos depois estouraria com o hit Blowin'in the Wind e o refrão “A resposta, amigo, está soprando ao vento”. E hoje olhamos o passado, miramos o futuro sem respostas.
Um grupo de idealistas natalenses subiu a ladeira das periferias e fincaram na Fortaleza dos Reis Magos muitas perguntas, protestos e artes. A contracultura em Natal foi a favor de todos. A poesia underground e o poema processo perfumavam submundos. E ninguém desejou respostas. Queriam - viveram - liberdade. Mesmo na ponta da maconha, no pincel das telas ou nas letras das faixas clamadas pela democracia.
A nostalgia foi a sobrevivente daqueles tempos tropicais. A única, talvez. Sem respostas. Sem mudanças, a contracultura serviu para o desbunde de momentos realmente livres, mesmo sob a vigilância covarde do chumbo. O cárcere moderno está na poesia de Iracema Macedo. O mundo marginal do tempo-hoje é dos pobres marginalizados, retratados pela veia poética de Jairo Lima. O escritor Mário Ivo Cavalcanti escancara com fina ironia alguns porquês do epíteto de Natal: a 'Londres Nordestina, desde aqueles tempos ou bem antes, vocacionada ao cosmo­politismo matuto. E nessa toada apresentamos a 11ª edição da Palumbo. Rendemos homenagem póstuma ao poeta Blecaute e seus impossíveis 50 anos comemorados neste 2011, e ao poeta Bianor Paulino, falecido neste janeiro emblemático: outra figura-símbolo daquela geração explosiva da marginália potiguar, que um dia sonhou com uma California Dream ainda utópica.
UM PASSEIO UNDERGROUND PELA ESQUINA DO CONTINENTE
Filipe Mamede
Repórter
A contracultura é a crista movente de uma onda, uma região de incerteza em que a cultura se torna quântica. Tomando emprestada a expressão do Prêmio Nobel de Física Ilya Prigogine, a contracultura é o equivalente cultural do “terceiro estado da termodinâmica”, a “região não-linear” em que equilíbrio e simetria deram lugar a uma complexidade tão intensa que aos nossos olhos parece caos.

O movimento nasceu sob sombras dos horrores das duas primeiras guerras mundiais, da possibilidade de uma catástrofe nuclear anunciada pela Guerra Fria, da guerra da Coreia e do Vletnã. A União Soviética entrara num processo de crise que a levaria à Perestroika e a seu fim em 1991. Cuba se submetia aos sovietes para salvar sua revolução, a qual deu novo fôlego à luta contra o imperialismo norte-americano e às lutas contra o colonialismo, principalmente na África.

Essa também foi época de desenvolvimento tecnológico e popularização da televisão - uma máquina de prazer capaz de moldar mentes desde a infância. Praticamente toda a arte produzida no período era influenciada ou fazia referência de alguma forma à TV e ao seu universo de sonho. Entretanto, a massificação e o código de símbolos foram subvertido. E a isso se deve o forte caráter popular na arte contracultural. Em menor escala, a guitarra elétrica teve importância, afinal possibilitou o Rock ‘n’ Roll e a propagação de suas idéias através de letras de músicas.

Uma outra tecnologia teve impacto transformador no mundo real e no imaginário. A destruição de Hiroshima por um artefato atômico acabou com a 2a Guerra Mundial e colocou o fim do mundo à distância de um botão. O apocalipse nunca esteve tão perto das mentes e corações humanos. Tal possibilidade levou a um sentimento generalizado de niilismo. E esse niilismo, junto com a abundância econômica do período pós-guerra, foram fun­amentais à gestação da contracultura.

Do ponto de vista cultural, avançou a indústria cultural ao mesmo tempo em que os jovens buscavam experiências rebeldes e alternativas, como o existencialismo de Sartre e Camus, os beatníks, os junkies, os punks dos anos 1950 e 1960, os hippies, as peças de Samuel Beckett, a música de Bob Dylan, a pop art, o rock, o rhythm'n'blues, o Cinema Novo brasileiro, a Nouvelle Vague, Bergman e o cinema japonês ...

A necessidade dos jovens estava em não querer ir à guerra, em não ter uma vida medíocre, em explorar os potenciais criativos, o corpo e o prazer. Isso implicava combater a moral, os costumes, as ideologias vigentes, assim como a dedicação a um trabalho exaustivo e alienante. Para as mulheres, tratava-se de combater o machismo, assumir seu corpo (principalmente com a invenção da pílula anticoncepcional) e ter posições sociais. Para os negros, tratava-se de ter direitos civis (principalmente nos Estados Unidos e na África do Sul). De modo geral, era uma época clamando por libertação.

Essa combustão hoje cinquentenária surgiu do contexto histórico, político, social e cultural nos anos 60, atravessou décadas e quilômetros de distância e chegou à esquina do nosso continente: Natal. A irreverência e o fazer artístico criaram cenários e palcos por aqui de grandes manifestações.
Os dois maiores expoentes dessa vanguarda po e ser reconhecidos na confecção do Festival do Forte e da manufatura da Galeria do Povo, "onde convergiam poetas, artistas plásticos, atores/atrizes, simpatizantes, onde todo final de semana o local se transformava em intenso e culturalmente fértil espaço para as pessoas irem e ficarem informadas sobre o que acontecia na cena cultural de Natal'.

Capitaneada pelo artista plástico Eduardo Alexandre, a Galeria do Povo serviu de estímulo para que produtores de arte e pessoas em geral falassem, discutissem suas produções. Para Carlos Gurgel, a Galeria “virou ponto de convergência para que essa consciência fosse manifestada através da produção dos artistas e de como essa produção servia para se criar em Natal uma cena mais interessante e intensa. As pessoas queriam saber como dar início ao processo de inserir a arte, a cultura ao seu cotidiano. Elas tinham também, tomando como liberdade de expressão e de vida, o sentimento de se explorar a consciência através de experimentações surreais. E essa cumplicidade entre fazer arte e essas experimentações, desaguou em uma produção intensamente forte, criativa e contracultural”, observa.

A Galeria do Povo - como era conhecida - era um movimento artístico a céu aberto. Realizava exposições espontâneas de poesias, crônicas, artigos, recortes de jornais e revistas, artes visuais, esculturas e faixas de manifestações políticas; e tudo isso, ali na Praia dos Artistas. Com mais de 200 exposições entre os anos de 1977 a 1986, nos muros da Galeria do Povo travou-se uma luta permanente contra a ditadura militar, expondo o descontentamento do povo com suas iniciativas e juntando-se a lutas pela retomada da caminhada democrática, da anistia, das eleições diretas, entre outras.

As exposições eram sempre inéditas. Normalmente traziam uma palavra de ordem em forma de faixa de manifestação ou em letras recortadas de papel e afixadas no muro: "Por uma democracia verdadeira, por um Brasil feliz!"; "Ao povo brasileiro, o direito de escolher os seus próprios destinos, pela convocação da Assembléia Constituinte!”. “A liberdade que exercíamos na Galeria do Povo, contrariamente àquela repressão toda, era um apelo e um incentivo à grande participação que o movimento alcançou”, deixa claro. Terra de poucos artistas até então, ou pelo menos, não conhecidos, a Galeria do Povo fez surgir às dezenas, multiplicando-se em todas as áreas de manifestações artísticas. Com a Galeria funcionando todos os finais de semana no local de maior afluência popular da cidade - a Praia dos Artistas - o surgimento de outros eventos ocorreu e muitos grupos se formaram a partir daqueles encontros de pé de calçada.

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