terça-feira, 22 de março de 2011

Eider Reis, o tetéu-mor



EIDER REIS, O TETÉU-MOR
José Alexandre Garcia
In Acontecências e Tipos da Confeitaria Delícia

Escritório da Travessa Equador, dez da manhã, o telefone tilinta:
- É pra você - diz o velho Zé Alexandre. E me passa o fone.
Ao atender, reconheci a voz de Eider Reis. Não com sua costumeira jovialidade, mas um Eider sisudo, grave, circunspecto, protocolar.

O INFAUSTO
- Soube do infausto? - emprestava conotações dramáticas ao termo infausto - Olívio caiu da prateleira! Ou melhor, subiu em escada para retirar uma daquelas conservas deterioradas que ele coleciona e - tchum! foi ao chão.
Ligeira pausa.
- Você sabe que é uma temeridade o português subir em escadas, com aquela perna dura!
E não deu chance a comentários.

VISITA AO DOENTE
- Precisamos fazer-lhe uma visita. Amigos são para estas coisas. Vamos oferecer nossos préstimos. Daqui a dez minutos estou na Delícia. Levando Múcio Teixeira. Telefone aí pra Mozart Silva, para nos encontrarmos lá.
Eu estava sobrecarregado de serviço. E aquela "queda da prateleira" me soava meio falso. Mas Eider era boa praça, um amigão, o Tetéu-mor.
O certo é que quando cheguei à Confeitaria, a primeira figura que encontrei risonho, forte e são do lombo, foi o português. E abancado na última mesa, com uma Teutônia casco verde aberta, Eider. Com ares de quem pregou boa peça.
- A manhã estava tão bonita! - justificou - E é um crime desperdiçá-la metido num escritório, em vis atividades mercenárias.
E ante a recusa, algo indignada, minha e de Mozart, de aderir à loura suada, foi persuasivo.
- É só uma. Para tirar a "pissica" de ontem. E abrir o apetite para o almoço.
Eider Reis era América numa família tradicional e visceral gozação, vivendo e gostando de viver.

O GANGO TETÉU
Creio que foi ele quem descobriu Olívio para os bate-papos, os aperitivos, os encontros de fim de expediente. A Delícia até então era mais confeitaria que bar. E este, restrito a uma meia dúzia de figurões. Amaro Mesquita, Oswaldo Medeiros, os irmãos Lamas - Antônio, Chico e Jacob - Roberto Freire, Luis de Barros, Jenkins da Força e Luz, o coronel Aluísio Moura, Chefe de Polícia. Limarujo ainda era pequeno comerciante.
O gordinho quebrantou a sisudez do ambiente com a sua verve. Convocou os amigos, os colegas de Banco, todo aquele que fosse irreverente e irmão da opa, como ele.
Como se aproximava o carnaval, inventou um bloco para brincar o tríduo momesco. Nos moldes dos "Pinguins do Amor" e "Jardim da Infância", assaltando residências, com orquestra própria e uma sede pra ninguém botar defeito.
A princípio, ensaiava-se batucando latas de ameixas vazias, os garfos, as facas, as colheres servindo de paletas, fazendo ritmo em cima das mesas.

DOZINHO
A incorporação de Dozinho, nomeado Compositor do Gango, foi providencial.
Aí, vieram os instrumentos de percussão, os tamborins, as cuícas, os pandeiros, os bombos, os recos-recos, a definição de repertório, as músicas ensaiadas pra valer e a constatação de que aquilo era a "sério" e não mais brincadeira.
Nascia, ali, o Gango Tetéu, de tantos carnavais e que chegou a ter sede na Circular.

PROPRIEDADE DO TETÉU S. A.
E a essas tantas, que dizia e pensava Olívio? O portuga divertia-se com as mumunhas, ria das anedotas, tomava partido nas discussões e contabilizava os lucros. Mesmo com a maioria na base do pendura, do depois eu pago, dos acertos de contas no fim do mês.
E tanta graça achava Olívio, que Eider foi tomando fôlego.
"Desapropriou" a Delícia, transformando-a em sede oficial do Gango. Na geladeira e num cofre do tempo da onça, que Olívio herdara de Sinval Duarte, fez afixar um cartaz: Propriedade do Gango Tetéu S. A.

O GÊNIO DE EIDER
Eider era funcionário do Banco do Brasil e filho de "seu" Enéas Reis, agente da Sul América e gerente do Cinema Rex.
E as comadres diziam que Eider "puxara" todinho a "seu" Enéas. Era baixinho, atarracado, meio pra gordo, o mesmo cacoete de pescoço, o mesmo fungado, a mesma maneira jovial de encarar as coisas, numa família de introspectivos, sisudões, como o clã dos Reis.
Os gênios de Edvaldo e Edvar eram diametralmente opostos ao de Eider. Somente Etiene se aproxima de Eider.

"SEU" ENÉAS
"Seu" Enéas era uma grande figura humana e homem de visão extraordinária. Foi ele um dos primeiros a antever que o Tirol seria o bairro do futuro e para
lá se mandou em meados de 1920, quando a Av. Hermes era um fim de mundo, longe de tudo. Basta dizer que até 1940 a cidade terminava na praça Pio X e dali por diante era tudo mato, quando muito, chácaras e sítios.
Foi ele quem doou o terreno para o ABC fazer seu campo de futebol. Foi ele quem incentivou a Liga de Desportos Terrestres, depois ARA, depois FND, a solicitar doação do que hoje é o Juvenal Lamartine. Foi ele quem mais botou na cabeça de Xixico para que o salineiro investisse no negócio de cinema.
Xixico terminou por capitular, mas impondo condição: que Enéas tomasse conta de tudo, pois ele, Xixico, apenas apareceria para embolsar a gaita.
Aliás, nas últimas semanas, quando do estertorar do "Rex" como casa de espetáculo, veio à tona as estroinices de Xixico, as farras de Xixico, a ojeriza que Xixico tinha ao trabalho.
Sem citar-se Enéas, o pé de boi, o gerente, o homem que criou a "Sessão das Moças". De saudosas recordacões. Do homem inteligente, que fazia questão de trazer bons filmes para exibir no seu telão. Que trouxe os maiores astros do rádio de então.

ABOLIÇÃO AO PALETÓ
Enéas Reis há de entrar um dia na história dos costumes da cidade por ter abolido paletó e gravata como trajes obrigatórios para se freqüentar casa de diversão no burgo, permitindo-se o sileque, até então desconhecido ou inaceitável.
E a adoção se fez de modo imprevisto, em plena Grande Guerra, idos de 42/43. Quando Natal era Trampolim da Vitória e pela Base de Parnamirim aterrissavam, abasteciam-se e decolavam rumo à África centenas de aeronaves, transportando tropas, levando munições e víveres para abastecer os exércitos aliados.
Os my friends, então, pululavam na cidade. Encontradiços nos bares da Dr. Barata. No U.S.O., nas pensões alegres, nos bailes do Aero Clube.
Pois, numa tarde, quando faltavam poucos minutos para o início da vesperal, um transporte militar estaciona na calçada do "Rex" e dele desembarcam uns sessenta a setenta gringos, todos esportivamente trajados com o tal de sileque, para assistir Jeanette Macdonald e Nelson Eddy na opereta "Oh, Marieta!", passando pela 13ª vez em Natal, sempre garantindo casas cheias. E a confusão se formou. Entra, não entra. É proibido, é um atentado à moral pública, pouca vergonha permitir-se galegos semi-nus assistirem cinema ao lado de nossas esposas e filhas - verberavam os puritanos.

A DECISÃO DE ENÉAS
Chamaram Enéas para dirimir a questão. Enéas ouviu um lado e outro. E enxergou o futuro. Entendeu, antes que ninguém, que a guerra traria profundas modificações na vida e nos costumes.
E dono e senhor da situação, decretou o fim do traje formal.
- A partir de hoje, está abolida a obrigatoriedade do uso de paletó e gravata para se assistir cinema em Natal.

O AMERICANO
Eider Réis era América numa família tradicional e visceralmente abecedista fanática. Travando discussões tremendas às horas de refeições. De um lado, Eider, sozinho, com seu espírito e a malemolência de inteligentes argumentos. Do outro, o resto da família. Com seu daltonismo, sempre vendo tudo preto e branco.
E Eider levava a melhor, na maioria das vezes. Com o beneplácito, evidente, do papai Enéas.
A propósito destas refeições, encontros obrigatórios de toda a família, mesa lauta e enorme como era antigamente, reunindo vinte e cinco pessoas, pais, filhos, irmãos, avós, parentes, aderentes, visitantes do interior e amigos ocasionais, contam uma muito boa de Eider.

A CUECA
Passava das 11 horas - dona Carmelita era rigorosa no horário - quando Eider surgiu, espavorido, vindo da rua, aos berros:
- Perdi! Perdi! Perdi!
- O quê, meu filho? A carteira? - perguntou dona CarrneIita. Mãe é sempre previdente. Pensa logo no imediatismo das coisas e mentalmente já reservara uma pelega de quinhentos, para colocar no bolso do filho.
E Eider, andando de um lado para outro:
- Perdi!" Perdi! Perdi!
- O automóvel? - inquiriu seu Enéas, pensando na apólice de seguro e em como resgatá-Ia em tempo recorde.
E Eider, cada vez mais dramático:
- Perdi! Perdi! Perdi!
- Afinal, o quê, meu filho?
- Perdi minha cueca. Novinha em folha. Não sei onde deixei ...
Naqueles tempos de tanto distanciamento entre pais e filhos, era atrevimento e muito, descaramento dos maiores. Quando se pensou que Enéas ia dar uma descascadela em regra, sabão dos mais severos, Enéas abriu-se numa risada gostosa.
Aí, todo mundo riu.

O ANGLIA
Eider possuia um Anglia dos mais adubados. Em 50, era um alto luxo, raridade somente permissível a quem era bancário, gastador, mas não mão aberta e que tinha logística toda de graça, casa, comida e roupa lavada. Os tempos áureos de JK e da indústria automobilística que ele criaria, estavam longe.
Para com o borrachinoso, como o chamava, seu dono tinha tratamento díspar.
Pela manhã, para se pegar uma carona, era um chove-não-molha tremendo. Tinha-se que ser submetido à inspeção quase militar: os sapatos estavam limpos? E as mãos? Cuidado com a porta. Não fume. Silêncio, para não perturbar o motorista.
À noite, depois de umas e outras, valia tudo. Comprimiam-se no seu interior quatro ou cinco amigos e mais copos, garrafas, pratos de tira-gosto, cordas de caranguejo, co-pilotos de sapatos enlameados, manoplas sujas de graxa, fumadores de charuto, o diabo.

TRAVESSIA DOS ALPES
Naquele ano fatídico, a Prefeitura finalmente tinha calçado a ladeira Ribeira-Petrópolis, a chamada Ladeira da Rádio Poti, depois crismada com o nome de Gustavo Cordeiro de Faria, homenagem ao general (germanófilo) que comandara a Guarnição de Natal, nos tumultuados dias da Guerra.
E a moda, o chique, a pedida da rapaziada que possuía carro, era pegar corrida do seu início, lá na Maternidade, que foi Hospital Militar durante os tempos de conflagração, e ir terminar, com mais de cem, lá em baixo, no Grande Hotel, de Theodorico.
- Olha o aviãozinho! - descarava Eider, rindo à socapa dos sobressaltos do acompanhante, desprevenido e com o coração aos pulos - É a travessia dos Alpes!

O DESASTRE
Naquele 30 de Abril, depois duma peixada em Areia Preta, comemorativa do aniversário de Joãozinho, ou porque era caminho para nova escalada ou para mostrar suas habilidades como emérito piloto, Eider dirigiu-se para a Cordeiro de Faria.
- Olha o aviãozinho - deve ter dito - É a travessia dos Alpes!
Quando percebeu, a carreta quebrada e sem nenhuma sinalização, imprevidentemente deixada no final da ladeira e na contramão, estava em cima. Num esforço desesperado, procurou, desviar o Anglia todo para a direita.
Conseguiu apenas salvar os companheiros. Zé Guerra, no banco da frente, ao seu lado, sofreu apenas escoriações. Idem, Cristalino, postado no banco traseiro atrás de Zé Guerra, Joãozinho, no meio, ficou com um braço algo defeituoso. E Walter Rocha, passageiro por trás de Eider foi internado em estado grave e submetido posteriormente a operação melindrosíssima. Mas todos estão contando a história.
A Eider, coube receber em cheio o impacto do choque, o carro engavetando-se na carreta e ficando reduzido a ferro velho.
Duas tragédias marcaram minha mocidade. O suicídio de Doutorzinho, meu primo e amigo, da mesma idade que eu, numa fatídica quarta-feira de cinzas, e o desastre que tirou Eider do nosso convívio. Ele, que era um amigo na acepção exata do vocábulo. Um hino de alegria. Uma canção de fraternidade. Uma alegria enorme de viver. Uma ilha de compreensão e grandeza humana, num mar de tantas mediocridades e de tantos espíritos mesquinhos que sobrevivem e amarguram nosso dia-a-dia.

O DESTINO DAS FLORES
Na tarde seguinte, depositei sobre seu túmulo as rosas mais belas que Mamãe colhera no jardim. Lembrando-me a cada instante, como lembro agora, dos versos que ele gostava de recitar, a propósito de tudo ou a propósito de nada:

"Até nas flores se encontra a diferença da sorte.
Umas enfeitam a vida, outras enfeitam a Morte" .

Faço, hoje, um buquê com minhas saudades, Eider!

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Na foto, identifico:
José Alexandre, centro
José Guerra, segundo à esquerda
Mozart Silva, segundo à direita
Dozinho, terceiro à direita

Pela descrição do texto, é possível que o primeiro à direita seja Eider Reis
Essa era parte do Gango Tetéu

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