domingo, 18 de outubro de 2009

Lembranças do Grande Ponto

Moacyr de Góes

Infância e adolescência foram por mim vividas no primeiro quarteirão a partir do Grande Ponto em direção ao baldo, na margem direita da Avenida Rio Branco. Mais precisamente: a casa de meu pai era separada do Cinema Rex pela casa de José Lucena, pai de Wellington, meu amigo. Assim, pode-se dizer, eu morava no Grande Ponto.
Esse tempo começou depois do levante comunista de 35 e, quando Getúlio Vargas morreu, em 1954, eu ainda estava lá.
Esse longo tempo é um largo espaço de calmaria e de um cotidiano em geral anódino, mesmo porque infância e adolescência só são valorados pelos crivos de lembranças da maturidade e da velhice. Mesmo assim, trago lembranças de vida que estão ligadas ao Grande Ponto.
O que era o Grande Ponto? Diz Cascudo1 que o nome vem de uma casa comercial de duas portas para a Rio Branco, três para a Pedro Soares (hoje, João Pessoa). Mercearia, sinuca e bar onde se tomava cerveja nos anos 20, de propriedade do português Custódio de Almeida. Depois, nome de esquina, encontro de linhas de bondes que vinham da Ribeira e do Alecrim, do Tirol e de Petrópolis. Mesmo quando a casa comercial já não existia mais, persistiu o nome Grande Ponto para definir o lugar, situação geográfica mais popular da cidade (...) presença e continuação - como ensina Cascudo. Para mim, o Grande Ponto é o espaço-tempo emocional onde eu descobri o mundo. E para mim o mundo começava em Natal, como para Cícero Dias começava no Recife.
Hoje, paro. Reflito. Anoto mais ou menos uma dúzia de momentos em que minha vida passou, significativamente, pelo Grande Ponto. Lembro.
1. A primeira lembrança está ligada ao Brasil na Segunda Guerra Mundial. Pela porta da casa de meu pai desfilou uma passeata de estudantes e populares recolhendo alumínio para o esforço de guerra. No Grande Ponto, numa clareira entre os trilhos dos bondes, estava erguida uma pirâmide de doações. Apanhei na dispensa uma chaleira e fui colocá-la na pirâmide. Ao chegar em casa, minha mãe reprovou meu gesto pois a chaleira era nova e deveria substituir a usada que, no fogão, já apresentava furos. Foi assim que, aos dez anos de idade, participei da guerra contra o nazi-fascismo - com uma chaleira.
2. A segunda lembrança é o som da mesma guerra. Eu explico. A rota Natal-Dakar colocava a cidade sob a ameaça de um possível ataque aéreo alemão. A defesa civil, então, treinava a população para deixar os bairros sob severo blecaute. O anúncio do início e do fim desse treinamento era feito através de estridente sirene que poderia tocar a qualquer hora. Entre a minha casa e o Grande Ponto, na margem esquerda da Rio Branco, ficava uma grande caixa d’água que abastecia toda a Cidade Alta. Eu sempre atribuí a localização da sirene na caixa d’água - e nunca soube, depois, se era verdade ou não. Mas o Grande Ponto, quando da guerra, me chegava também por esse som.
3. A terceira lembrança é a de um Grande Ponto que não houve. Eu conto. Do Grande Ponto para o Baldo, no terceiro quarteirão da margem esquerda da Rio Branco, ainda no tempo da Guerra, morava N., minha primeira namorada. Nunca conversamos, mas sabíamos, pelos olhares, que estávamos namorando. Uma tarde, ela passa pela minha casa e deixa um bilhete dizendo que ia me esperar no Grande Ponto. Este bilhete nunca chegou às minhas mãos e só muitos anos depois é que ela me contou essa história. Minha mãe, indormida e guardiã de minha infância, interceptou o bilhete e nunca me disse nada. Assim, foi o Grande Ponto que não houve, ou, mais ou menos, como o verso de Bandeira: a vida que poderia ter sido e que não foi.
4. A quarta lembrança do Grande Ponto me vem por um outro sentido: o paladar. Do Grande Ponto pela Rua João Pessoa, o primeiro e o segundo quarteirões são separados por esquinas de sabores inesquecíveis: o primeiro sorvete na Polar, a salada de frutas da sorveteria Cruzeiro (da qual falarei adiante) e, bem mais tarde, a primeira cerveja no Botijinha, este um misterioso bar que não tinha portas pois virava dia e noite.
5. A quinta lembrança me leva ao Natal Clube, que fazia esquina no Grande Ponto. Na cobertura, que era um amplo espaço em toda a dimensão do prédio, foi realizado um ato público em defesa da Campanha do Petróleo é Nosso. Lá, fiz meu primeiro discurso em praça pública, representando o Colégio Marista. O comício, cercado pela polícia, foi considerado subversivo. Lembro que foi nessa data que conheci o professor Luiz Maranhão.
6. A sexta lembrança me remete à sorveteria Cruzeiro, já referida. O evento é a exposição de pintura de meu primo Newton Navarro que levou o nome de um verso de Drummond: Sejamos pornográficos, docemente pornográficos. A exposição tinha como mote principal a provocação à burguesia natalense. E essa meta foi alcançada, com louvor. Pauladas conservadoras vieram de todos os cantos. A essa altura, já com fumacinhas intelectuais, eu me metia em organizações de grêmios estudantis, como a Academia Histórico Cultural, que se reunia no Instituto de Música, esquina de Rio Branco com General Osório, também no Grande Ponto.
7. Ficamos ainda na sorveteria Cruzeiro, nesta sétima lembrança. O local, aliás, é apenas um contraponto. A história mesma se passava numa casa da rua Felipe Camarão. Foi o tempo de meu longo e feliz namoro e noivado de oito anos. Então, Sinval Lopes Pinheiro namorava Branca e eu namorava Nenen (Conceição). Às noites, João Ururahy, com seus elegantes cigarros americanos, comparecia para conversar com Mailde sobre literatura e política. Às dez horas, minha futura sogra, Dona Chiquinela, nos colocava para fora, pois aquela era uma casa de família. Aonde íamos continuar o papo? Na sorveteria Cruzeiro, até o fechamento. E haja assunto!
8. O Grande Ponto funcionava em dois expedientes: um, antes do jantar, outro, à noite. As rodas formadas eram sempre de homens. Mulher que, assiduamente, freqüentava o lugar, no meu tempo, eu lembro de Nenen Pacheco, acompanhando o marido, José, e discutindo política - afinal ela era filha de Amaro Magalhães, um dos grandes líderes cafeístas da primeira metade do século 20, em Natal. Mesmo arriscando a injustiça das omissões, lá vão alguns nomes representativos do espírito do Grande Ponto: Djalma Maranhão, João Machado, José Alexandre Garcia, Leonardo Bezerra, Loril, João Ururahy, Pedro Coelho, Paulo Bittencourt, Luís Gonzaga (algumas vezes acompanhado da mulher, Lourdinha), Milton Siqueira, Boanerges Soares, Afonso Laurentino Ramos, Newton Navarro, Albimar Marinho, Ubirajara Macedo, Rivaldo Pinheiro, Aluízio Barros, Meira Pires, Eudes Moura, Alvamar Furtado, Deus (Ivanildo, filho do professor Saturnino), Abel Viana, Liliu, e tantos outros. Depois vieram novas gerações: Hélio Vasconcelos, Paulo Oliveira, Márcio Marinho, Omar Pimenta, Danilo Bessa, Brígido Ferreira, os irmãos Siminéia, Meira e Chico Lima, e foi pouco depois desse tempo que Geniberto Campos e Borginho foram aos murros por causa de discussão política.
Numa linguagem de hoje, diríamos que muitas eram as tribos e galeras. Havia também as rodas dos desportistas que discutiam remo e futebol. Nos tempos de campanha eleitoral, assinava o ponto por lá a conhecida Maria Mula Manca, destemida cabo eleitoral de Dinarte Mariz e o também conhecido estudante apelidado de Pecado, um agente duplo infiltrado pela polícia nas hostes das esquerdas. E todas as tardes, o Grande Ponto ouvia o grito de guerra do negro Cambraia, o jornaleiro mais importante de Natal, que vendendo a Folha da Tarde celebrava o milagre da sobrevivência de um jornal que não tinha um tostão em caixa.
O Café São Luiz e a Confeitaria Cisne tinham público cativos. O Natal Clube orgulhava-se de seu grupo de carteado, no qual o Deputado Djalma Marinho era figura de responsa.
Às vezes, pela manhã, na Ribeira, na esquina de Tavares de Lyra com Dr. Barata (a esquina do mundo, como chamava Djalma Maranhão), o mentiroso soltava um boato que lhe era contado à noite no Grande Ponto. E ainda com reservas de segredo. No tempo da guerra, em Natal, a notícia para ser verídica precisava ser confirmada pelo Rádio da Marinha...
9. Grandes eventos de Natal, curiosamente, evitavam o Grande Ponto como ponto fixo. Passavam pela esquina, ocupando a Rio Branco. Era o caso da Igreja e sua grande Procissão do Encontro, na Semana Santa. As imagens do Senhor dos Passos e da Virgem Maria, percorrendo caminhos diferentes, se encontravam na Praça Sete. Aí, quando o sermão era feito pelo Cônego Luís Wanderley, muita gente chorava.
O corso carnavalesco era feito na Rio Branco e depois na Deodoro, isto é, passando pela margem do Grande Ponto. O mesmo quando dos ciclos junino e natalino: a Prefeitura armava o palanque para os autos populares e folclóricos na esquina de Rio Branco com Ulisses Caldas. A primeira Praça de Cultura de Natal foi celebrada na esquina, mas, armada do outro lado, nas vizinhanças do cinema Nordeste.
10. Foi no Grande Ponto, em 1952, que eu conheci Djalma Maranhão. Ele era candidato a deputado estadual e precisava ganhar espaço no movimento estudantil. Seu aliciamento foi claro e direto. Me disse:
- Em Natal, todos os estudantes são do PSD ou da UDN, influenciados pelos pais. Tudo pequeno burguês! Convido você para vir para o cafeísmo. Café Filho tem passado de defesa da classe operária, uma história.
Aí deu-se o meu salto qualitativo do movimento estudantil para a política partidária. Daí em diante, meu caminho político foi feito junto a Djalma Maranhão: pelos partidos políticos (PSP, PTN, PSB), no jornalismo (Jornal de Natal e Folha da Tarde), nas campanhas políticas (deputado estadual, deputado federal, senador, prefeito), por duas vezes na prefeitura de Natal (Chefe de Gabinete e Secretário de Educação), nos cárceres da reação, como gosta de dizer o meu amigo Eurico Reis e, finalmente, na diáspora potiguar de 1964. Esta minha prática política nasceu no Grande Ponto, em 1952.
11. Em 1958, um forte cabo de aço suspenso no Grande Ponto atravessava a Rua João Pessoa, em frente à Confeitaria Cisne, sustentando letras recortadas em folha inteira de madeira compensada, articuladas separadamente. Ao vento, cada letra se movia com uma bela elegância. Lia-se: MARANHÃO PARA FEDERAL. Isso deve ter sido coisa de José Ribamar. Essa publicidade eleitoral trouxe um forte impacto na divulgação da candidatura de Djalma Maranhão à Câmara Federal. Lembro dele, de camisa arregaçada, em baixo daquelas letras, rindo como um menino que tivesse ganho um presente novo.
Passados tantos anos, recordando o episódio, faço uma releitura simbólica. Ele que fora chamado de Prefeito do Subúrbio, na tentativa dos conservadores de desqualificá-lo, chegava agora ao centro da cidade e chantava seus brasões como novo navegante. Tomava posse de seu chão de casa. E o Grande Ponto, como coração da cidade, aceitava-o como um dos seus. Isso ficou evidente, dois anos depois, em 1960, quando a cidade o elegeu prefeito com 64% dos votos válidos. Nos três anos e seis meses seguintes, Natal viveria uma democracia participativa, coisa que só ganharia esse conceito nas administrações do PT, após a Constituição de 1988.
Em 1962-63 fundou-se, no Grande Ponto, num velho sobrado em frente à Confeitaria Cisne, o Fórum de Debates Djalma Maranhão. Foi outra tomada de posse de seu chão de casa. Outra visão profética de uma administração que precisaria ser construída com o povo. Ali, a democracia participativa criava raízes pois a discussão era permanente sobre as grandes questões nacionais e da cidade.
Foi lá onde foi celebrado o I Congresso Nacional de Educação e Cultura Popular, com a presença significativa de grandes intelectuais brasileiros. Lembro que na sessão de encerramento havia tanta gente que o velho sobrado rangia e ameaçava desabar. Temendo o pior, Djalma Maranhão se socorreu de Marcelo Fernandes para que ele desse um jeito de desocupar o local. Valendo-se de sua criatividade de diretor de teatro, Marcelo tomou de uma bandeira nacional e gritou: "Quem for brasileiro, siga-me!" Repetindo o brado abriu caminho pela escada entupida de gente e conseguiu transferir para o meio da rua João Pessoa o encerramento do Congresso.
12. Certamente muito pouca gente ainda se lembra do dia em que o Grande Ponto falou para o mundo (e isso nada tem a ver com a Rádio Jornal do Commercio, do Recife). Foi no dia 5 de maio de 1963. Eu conto. À noite, o embaixador americano Lincoln Gordon era recebido pelo governador Aluízio Alves no Palácio do governo com um banquete e lá assinaria o protocolo de posse das novas terras compradas pela Aliança para o Progresso. Em resposta, o prefeito Djalma Maranhão foi para o Grande Ponto à frente de 40 mil pessoas (o que era 1/4 da população de Natal) e, com as bandeiras da soberania nacional fazia a denúncia e o protesto. Convidado, Brizola compareceu e com ele a irradiação do comício pela Rádio Mayrink Veiga e transmissão em cadeia com mais de cem emissoras de rádio espalhadas por todo o país. Foi assim que o Grande Ponto falou para o mundo.
Aliás, o que muita gente se lembra, é que no meio da maior vibração nacionalista e de esquerda, Brizola, que denunciava a conspiração do golpe de direita (que, efetivamente ocorreria antes de um ano, em 1964), resolveu chamar o general Muricy, comandante da guarnição de Natal, de gorila e de fujão. Isso também o Grande Ponto falou para o mundo. Aí nos caiu o céu na cabeça, como temia Abracurcix, ínclito chefe de Asterix, Obelix e outros gauleses ilustres nas suas lutas contra os romanos e normandos. O corporativismo militar uniu todas as patentes e, então foi mais fácil conspirar contra o governo legítimo do presidente Jango.
O Grande Ponto falara para o mundo, mas nada é perfeito. Já dizia a Raposa ao Pequeno Príncipe.

Rio de Janeiro, 8 de outubro de 2002

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