quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A chuva que acordou o dia

Eduardo Alexandre


A chuva que acordou o dia transportou-me para tempos distantes, anos 60, no Tirol da minha infância.

O cheiro da mata chegando, o pé do morro lavado de suas guabirobas suculentas e deliciosas; o medo da cobra-de-veado, a suaçubóia que, se não era venenosa como as corais perigosas que habitavam debaixo das folhas caídas dos cajueiros, “matava de arrocho, enrolando-se nas pessoas até sufocá-las”.

Quanto medo das cobras gigantes dos morros do Tirol!

O desejo de degustar a guabiroba do “Pé-do-morro”, porém, era maior.

Maior que o medo da suaçubóia — termo aprendido depois, nas salas de aula do Marista; maior que os sustos causados pela mimética cobra-cipó; maior que medo da “aleijante cipoada do rabo do camaleão”.

Meninos, juntávamos nossos cachorros e, enganando o balaço dos fuzis que vinha do Dezesseis Erre-i treinando pontaria, aventurávamo-nos pelas trilhas que nos levariam para Barreira d’Água com seu encantador solo esculpido pela natureza das chuvas, os nossos cânions, depois levados pela ganância da construção civil. Solo a guardar água limpa e “saborosa”, bebida com a ajuda das mãos na sofreguidão do cansaço de subidas e descidas de dunas escaldantes.

O riozinho a formar-se ao pé das barreiras e a “encher” o mar Atlântico com suas poucas águas era uma fantasia real. “Um quê a mais” no meio daquela selva.

Os cajus do Morro do Careca, por trás do quartel; os sagüis a nos indicar o cambuizeiro doce; os pequenos bem-te-vis dando surras em gaviões em fugas desesperadas; a raposa fugindo ao inaudível som emitido; as brigas de morte das cobras com os teiuaçus, “salvos pelo pé de pinhão”, tudo isso era íntimo da infância do Tirol.

Nas cercanias, as vacas pastavam e as borboletas, amarelo-pálidas como chananas, chegavam também teimosas com o calor das manhãs.

A pista, imensa nesga preta de asfalto deixada pelos americanos quando da guerra, era limite de estripulias infantis. Do lado de lá, a Praça Augusto Leite, pobre, em meio a um barreiro onde os campos de pelada surgiam destocando moitas teimosas a atrair saúvas “que acabariam com a nação se não acabássemos com elas”.

Do lado de cá, o reino de Dudé, filho de Seu Fausto, dono da vacaria — na garupa do jumento aparecido ou no lombo do cavalo do cercado, dava o tom da reação contra a “tropa” que ousava cruzar a pista, vinda da Augusto Leite.

A pelada dizia quem era melhor. Mas os socos e arranca-rabos por vezes aconteciam, decidindo, de vez, todas as pendengas.

Debaixo do juazeiro limpo, sem espinhos, defronte de sua casa, Dudé comandava a “tropa de cá” equilibrando-se pela mão esquerda sob a perna chocha, encolhida pela paralisia infantil, para não despencar. Coisa de “quem havia chupado manga depois do leite” ou “tomado banho depois da feijoada”.

Do morro, descia Carioca, com seu balaio de mangas e cajus, pitombas, homem misterioso, de pouca conversa, senhor de todos os segredos do Morro do Roncador, a confirmar os tremores de terra que, diziam, deles o Brasil estava livre, pois sim! Morro do Roncador! Por que haveria de roncar um morro por trás das poucas casas do Tirol? Acho que nem Carioca sabia, ele “que morava há duzentos anos” num sítio entre os morros que nos levavam à Barreira Roxa, praia de pescarias de bons xaréus, pampos, barbudinhos, fartos antes que o barulho da cidade e sua sujeira os afugentassem para longe.

Dali, vi Natal deixar para trás a corrente. Esta que era limite da cidade e que, depois, trouxe a fábrica da Guararapes de Seu Nevaldo, o homem que iniciara com duas máquinas de costura o seu império e que viera para escrever a história do desenvolvimento da cidade, sucesso hoje desaguado no mesmo local, chamado “Me Dei Mal” pela população jovem que não viveu esses tempos.

Tirol que não assistiu às contendas de Luís Tavares contra os gringos insolentes da guerra, mas que lhe deu guarida nos seus últimos dias de tranqüilidade e bons exemplos. Tirol de Berilo Wanderley e dos bondes que traziam frescas suas crônicas para a Hemetério Fernandes, rua que me trouxe as primeiras luzes pelas mãos de Dona Adelaide, a parteira da cidade.

Tirol do rela-bucho da Lagoa Manoel Felipe; do Aéro do apaixonado getulista Boquinha; do América de Maria Creuza e dos grandes carnavais; Tirol da AABB aberta não só a bancários; Tirol que se deixou seduzir pelo comércio.

Tirol de quantos nomes?

Tirol de tanta gente, de tanta paisagem humana e boa que não cabe enumerar numa crônica amanhecida de uma nuvem que só trouxe borboletas amarelo-pálidas como as teimosas chananas e as guabirobas de saudade, doces como o amarelo dos cambuís de suas dunas hoje encobertas pelo concreto do progresso que as invade, levando ternas virgindades de antigamente.

Um comentário:

  1. Dunga vc arrasou descrevendo nosso querido bairro Tirol,passei a frequentar Tirol nos anos 70 e pude sentir algumas palavras que vc descreveu. E por mais que o tempo passe, fica alguns resquícios do passado.E sou moradora do Tirol desde 1975 quando aqui era conhecido como Morro Branco,mas descobri com o passar dos tempos que Morro era fictício,ou seja apelido colocado pelos moradores.E quando cheguei aqui lembro-me bem de um curral em frente a minha casa que era vizinho ao campo de treinamento do ABC futebol clube ,eu me sentia numa fazenda olhando todas aquelas vacas pastando no local onde hoje são casas e edificios. Mas aqui eu corri na areia e via sempre o time do abc passar antes de ir ao castelão e eu como uma americana nata ficava em cima do muro a gritar feito moleque . Voces vão perder, me lembro que o goleiro chamava-se Hélio show, ....Vai goleiro volta com frangos para eu cozinhar.
    Te espero aqui na volta rsrsrsr. E quando eu ia assistir o jogo no castelão nas cadeiras numeradas, adorava encher o saco do deputado Agnelo e outros membros da sociedade abcdista gritando pelo meu saudoso América. Imagina tudo isso com 13 anos.
    Outra façanha foi certa vez eu ter ido assistir no cinema Rio Grande, Romeu e Julieta, não tinha idade ainda , enrolei o cobrador ,ele quando viu que eu era menor de 14 anos, foi mandado a gente ficar do lado para devolver nosso dinheiro , enquanto isso, aproveitei a multidão,cinema lotado , estava toda a jovem sociedade de Natal, passei um pitú nele e corri de Rio Grande adentro,e o segurança me procurando ,fui sentar lá na primeira fila rsrs ,fiquei de pescoço duro. No final de toda essa aventura voltei a pé de petropolis ao inicio de Tirol , que para os preconceituosos não era Tirol e sim Morro Branco , Mas com o passar do anos ainda existe amigos que brincam dizendo que depois do exercito é interior.Mas pense num interior bom e que estamos perto de tudo , resumindo estamos no meio de Natal ...Mid way...(mas chique americanizar) ,pois seria meio do caminho.E aqui no Morro Branco fícticio, querendo ou não, somos amigos do Tirol.

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