terça-feira, 29 de setembro de 2009
Rederredinha
Vai um peixe frito com tapioca?
Um cheiro de dendê de mercado?
De cachaça chegada ao copo?
De caju cortado ao prato?
Uma cavala branca no Pé do Gavião?
Serigoela, mangaba, cajá
Cheiro de quê?
De amor?
Cheiro de mar?
Redinha do Gajeiro
Da folia do carnaval
Dos paquetes chegando
Praieiras
Quantos amores
Quantos encantos
e cantos
a Redinha cantou?
Sonho de casamento na capelinha branca
alto da duna
Benção
da Mãezinha dos Navegantes!
Redinha de ginga
palhas de coqueirais
velas, cabelos ao vento
Brisa
Ranger de areia fina
no passo
descalço
de pastorinhas em fandangos
e bumbas-meu-boi.
Sonopreguiça
Rederredinha
Natal !
Foto: Pedro Morgan
O carnaval na Rua da Palha
Quando comecei a me entender de gente, o carnaval de Natal era na rua da Palha (hoje Vigário Bartolomeu), no trecho compreendido entre a rua Ulisses Caldas e a praça do padre João Maria. Instruirei os que não conheceram Natal desse tempo. Era um trecho de uns 300 metros, em moderado declive, as casas todas residenciais, distendidas inteiriçamente no alinhamento da rua.
As janelas numerosas, à razão de cinco ou mais por casa, eram observatórios privilegiados e ficavam sempre repletas. À calçada, punham-se cadeiras que dilatavam a área de conforto dos moradores da rua da Palha...
E, assim, brincava-se uma brincadeira quase inocente, que consistia em circular rua acima, rua abaixo, distribuindo confetes e seringadas de lança-perfume. Quase todos procuravam acertar o jato de lança-perfume na vista uns dos outros, pelo que as crianças se apresentavam em geral protegidas com uns óculos tipo aviador.
Havia abundância de mascarados com a preocupação do engraçado. Podia ser que nem sempre despertassem o nosso riso abundante, mas bem que mereciam uma comovida admiração esses bravos foliões. Como deviam padecer sob as cômicas caracterizações que escolhiam: às vezes, conduziam objetos mortalmente incômodos; outras vezes, afivelavam máscaras martirizadoras como enormes cabeças de bichos; por vezes, ainda, enfiavam roupas antigas, pesadas e sujas, sob as quais suavam em profusão. E havia, também, os que adotavam disfarces raciais e, então, se tisnavam densamente.
Sinceros e resolutos foliões! Para eles, o carnaval era uma breve oportunidade em que podiam dar vazão a sua sopitada vocação crítica.
O que havia, porém, de mais expressivo no carnaval de Natal ao meu tempo de menino, era o misterioso “Zé Pereira”. Misterioso, sim, porque provinha de um clube de rapazes da sociedade, os quais saiam à rua uma única vez por ano, no sábado de carnaval, à meia-noite. Partiam do Natal Clube e percorriam toda a cidade num bonde especial, que, àquela época, os automóveis eram raros e precários.
Lá em casa, os meninos eram postos a dormir na hora do costume, às 7 horas, mas, em verdade, ficávamos numa vigilante excitação íntima. Até meia-noite, todavia, o sono já nos havia vencido, de sorte que quando estalavam os clarins do “ Zé Pereira” e o bonde se movimentava na nossa rua, bem perto do Natal Clube, éramos levados à janela tontos de sono, olhos pesados, mente turva.
O “Zé Pereira” passava rapidamente, era uma imagem breve e confusa. O que se prolongava era o ressoar da sua música; era, sobretudo, o bombo predominante. E durante os três dias, todos entoavam os versos do “Zé Pereira”:
“Viva o Zé Pereira,
Que hoje à rua sai.
Quem não come, cheira;
Quem não tomba, cai:
Zimbararal! Zimbararal!
Viva o carnaval!
In Crônica de uma cidade chamada Natal. Editora Clima. Natal/RN, 1989.
Canto do Potiguara
(TORÉ)
Curupira se afugenta,
Manitó esquece a taba,
Mas minh´alma não esquece
O amor de Porangaba.
Cai a murta, o camboim
O murici, a mangaba,
Mas não cai dos meus sentidos
O amor de Porangaba.
Cambaleia o pau-d´arqueiro,
Que ao rijo tufão desaba:
Mas não se abate em meu peito
O amor de Porangaba.
Vai-se o torcaz que gemia
Ao pé da jabuticaba,
Mas não deixam os meus anelos
O amor de Porangaba.
Foge a abelha que zumbia
Sobre a flor da guabiraba,
Mas não foge aos meus afetos
O amor de Porangaba.
Despe a flor o ingazeiro,
A oiticica, a quixaba:
Mas não me escapa da mente
O amor de Porangaba.
Da cunhã remorde a face
Reimoso capiucaba;
Mas não remorde o ciúme
O amor de Porangaba.
De Moema o terno amor,
Não, não rende o imbuaba,
Mas a mim rende e cativa
O amor de Porangaba.
Da extremosa Margarida
O amor já não se gaba;
Mas eu decanto, Arãhi,
O amor de Porangaba.
O pajé canta a bravura
Do alto Morubixaba,
Mas eu só canto em toré
O amor de Porangaba.
Anhangá cede a Tupã
No poder que não se acaba,
Mas não cede a outro amor
O amor de Porangaba.
Explicação do Canto do Potiguara
Potiguara: “Comedor de camarão”, nome da tribo que habitava o Rio Grande do Norte.
Toré: Melopéia indígena. Canto tristonho, prolongando os últimos versos.
Curupira: Gênio do Mal.
Manitó: Gênio protetor da
Taba: Casa grande ou o ajuntamento das habitações indígenas.
Camboim: fruto silvestre do Brasil.
Muricy ou murici: Gênero de plantas malpighiáceas do Brasil.
Pau-d`arqueiro: Nome popular de pau-d`arco.
Torquaz, ou ainda concliz ou corrupião: Nome de ave do Brasil, famosa pelo canto e pelas cores.
Jabuticaba: Fruto da jabuticabeira, mirtácea do Brasil, que compreende várias espécies.
Guabiraba: Fruto da guabirabeira, gênero de borragináceas do Brasil.
Quixaba: Fruto silvestre do Brasil.
Cunhã: Donzela.
Capiucaba: Marimbondo.
Moema: Personagem histórica dos primeiros tempos da colonização no Brasil.
Imbuaba: Nome dado pelos indígenas ao europeu; do guarani – neboab, “pernas vestidas”.
Arãhy: Interjeição ou explosão de voz (em Tupi) traduzindo a saudade.
Pajé: Feiticeiro e cantor dos feitos guerreiros da tribo.
Morubixaba: Chefe dos índios. Maioral.
Anhangá: O Diabo dos índios.
Tupã: Deus
In Joaquim Eduvirges de Mello Açucena (Lourival Açucena) (Lorênio)
Versos reunidos por – Luís da Câmara Cascudo,
Coleção Resgate – Editora Universitária UFRN, 1986.
1. Defronte à Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, onde hoje se situa a praça André de Albuquerque.
². Atual avenida Rio Branco, Cidade Alta.
³. Atual rua Chile, na Ribeira.
Picolé de coco
Houve um tempo em que eu, menino gordinho e sem nenhuma maldade, era uma espécie de referência na minha casa. Filho primeiro de um casal que havia vindo do interior da Paraíba nos anos 1950, era tratado como um troféu. Recebia todas das benesses da idade, o que incluía copos de alumínio com picolés de coco que minha mãe me servia ao entardecer daqueles tempos da rua Manoel Dantas, em Petrópolis.
A gente se sentava no muro alto da casa da esquina da rua Ana Néri, onde morávamos, para esperar o meu pai ao entardecer. Era difícil vislumbra-lo nos finais de tarde, vindo da direção da avenida Deodoro, a pé. Ele era boêmio. Não costumava chegar cedo da noite, mas, sim, cedo do dia. Entretanto, vez por outra, digamos, lotericamente, ele vinha. Era uma alegria! Foram poucas vezes naquele tempo, confesso. Mas, quando ele surgia com aquele paletó de linho branco, todo amassado, era como um presente. Eu torcia para que aquele milagre fosse diário. Nunca foi, mas o que foi, foi bom.
O picolé abundante de coco era o mote para irmos esperar papai. Eu devia ter uns cinco anos de idade. Mamãe, 24. Tão solitária como as noites que avizinhavam os seus dias. Linda e resignada, conhecia a boemia pela mão de Omega Sodré, meu avô. Sabia que a espera nunca poderia ser concretizada totalmente. Talvez por isso gostasse tanto, como até agora, de um saguão de aeroporto: pode atrasar, mas alguém vai chegar. Quanto a mim, estava, na minha inocência, saciado pelo picolé de coco. Tão gostoso, que duvido que alguém fizesse um melhor do que a minha mãe. Hoje, sei que aquele capricho não era para mim: era para o meu pai.
Era um paraíso desejado. Uma vontade danada de que ele estivesse ao seu lado todas as noites. Mas ele nunca estava.
Hoje, passadas quase cinco décadas, vejo-a ainda esperando. Minha mãe nunca deixou de esperar. Às vezes, espera por mim; outras, pelos netos. Às vezes, mostra um semblante triste que revela aquela mesma solidão que viveu quando era uma jovem senhora numa cidade desconhecida. Mamãe nunca deixou de esperar. Ela conhece a solidão como ninguém, talvez até academicamente, se houvesse academicismo para mensurar a solidão. Mas ela é poética e dribla a morte com a suavidade da música, com alegria e uma vontade tão grande de viver, que é inimaginável vê-la um dia morrer.
E continua a fazer deliciosos picolés de coco.
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
A FÊRA DO CARRASCO
Nuis dias de quarta fêra,
lá no Carrasco, in Natá,
uma fêra maraviosa,
tem de tudo, é colossá.
E in têrmo de presepada,
lhe juro, meu camarada:
Eu nunca ví nada iguá.
No tempo que eu biritava,
lá eu tinha meu ispaço.
Nais barracas, tira gôsto,
e alí, sem imbaraço,
tendo ao lado um sanfonêro,
biritando o dia intêro,
eu era o reis do pedaço.
Chegando á fêra da carne,
Nelinho, um cabra legá,
à carne do tira gôsto,
dava um trato biritá.
Na barraca de Francisca,
a gente seguia à risca,
o meu compadre Norbá.
Tinha Araquen, Timba, Tôco,
Fernando, Doca, Bastinho,
Romão, Bocão, o véio do queijo,
Nino, Bobeira e Bodinho.
Fazia parte da lista,
um que era taxista,
meu amigo Tomazinho.
Dona Helena da barraca,
a cada um biritêro,
atindia a todo mundo,
com caríin o dia intêro.
O ambiente era gostôso,
sempre eu ía cum Teimoso,
mais seu Chimba e o Véio Fulêro.
Quando era no fim da fêra,
alí virava um bordel.
Mas era maraviôso,
eu me sentia no céu.
Já melado aperriando,
e desafôro iscutando,
da véia dona Isabel.
Carlinhos do cachorro quente,
sempre mexendo a panela.
Se a garrafa de cachaça,
tava perto, eu ía nela.
Carlinhos me dava ispôrro,
quando eu pidia um cachôrro,
um pinico e uma vela.
Taí, Nelinho, o poema,
prá minha gente querida.
Para todos uis fêrante,
prá fêra nunca isquecida.
Digo nais ponta duis casco,
que tu, Fêra do Carrasco,
faiz parte da minha vida...
Bob Motta
NATAL-RN
28.Set.2009
domingo, 27 de setembro de 2009
A vida boêmia de Natal - 1939
Por volta de 1939, início da II Guerra Mundial, os cabarés mais famosos de Natal situavam-se na Ribeira. Bastante freqüentados, eram muito populares, fazendo parte integrante da vida boêmia da cidade, que se iniciava depois das 9 horas da noite, quando as famílias já tinham se recolhido.
Na vida noturna provinciana encontravam-se as prostitutas, os cáftens e os gigolôs, que também serviam de inspiração aos poetas e escritores.
Naquela época, a cerveja era vendida ao preço de mil e quinhentos réis, sendo uma das bebidas mais consumidas pelos pândegos da boemia. As mulheres da zona pediam martini aos acompanhantes, que era servido ao preço de cinco mil réis a dose. A popularização do whisky ocorreu somente depois, com a chegada dos americanos a Natal.
Nos cabarés, às vezes, aconteciam pelas madrugadas brigas e pancadarias, entre os freqüentadores, sendo necessária a presença da polícia, para acalmar os mais exaltados.
Normalmente, dentro das pensões alegres existia uma figura andrógina, alegre, com requebros e trejeitos femininos, cabelos oxigenados, muito conhecida pelos freqüentadores. Por aquela época, uma era conhecida por "Afago verde".
Nesse tempo, as parteiras eram responsáveis por grande parte das vidas que surgiam. O parto era feito em casa, com o resguardo de vários dias e muita canja de galinha. Em partos mais difíceis, surgia o médico, com a sua inseparável valise e o estetoscópio.
As pensões alegres eram freqüentadas por pessoas de diferentes níveis sociais. À noite, já com o dólar correndo solto, surgiram os vendedores clandestinos, que vendiam perfumes, isqueiros, sabonetes, whiskys, cigarros, etc.
As músicas mais tocadas nas radiolas de ficha eram os tangos e maxixes, que, aos poucos, foram sendo substituídos por swings, blues e fox trotes, já na década de 1940.
Naqueles anos, apareceu na zona uma novata: morena, de olhos e cabelos negros, que circulou por várias casas noturnas e despertou a paixão de muitos freqüentadores. Os seus pretendentes eram selecionados pela disposição de abrir a carteira. Contam que ela terminou os seus dias abandonada e esquecida no Beco da Quarentena, tomando injeções diárias de "914", aplicadas por um enfermeiro da Saúde Pública aos portadores de sífilis. A profilaxia era uma lavagem à base de permanganato.
As notícias da guerra, via BBC Londrina, transmitidas pela Agência Pernambucana, antes da inauguração da REN - Rádio Educadora de Natal, eram geralmente acompanhadas pela "Canção do Expedicionário", que traduzia a saudade da pátria e a esperança de vitória dos Pracinhas Brasileiros, na Itália. Por ali se tinha notícias dos últimos acontecimentos da II Guerra Mundial na Europa.
No Cine Polytheama, na Praça Augusto Severo, Ingrid Bergman, Diana Durbin, Judy Erland e outros artistas encantavam os telespectadores.
O movimento do Porto, ali perto, era intenso, guarnecido pelos fuzileiros navais que, sob o tema "Adsumus", que significa "aqui estamos", eram admirados e respeitados pela população, em virtude do exemplo de dedicação e profissionalismo em defesa da pátria.
As notícias da noite corriam velozes, de boca em boca, e terminavam no Grande Ponto, ou no Bar Cova da Onça, na Av. Tavares de Lira, onde o garçom "Cara larga" atendia aos clientes, na parte de trás do Estabelecimento. Muitas dessas histórias já modificadas pelo povo.
Assim era a vida noturna da Natal boêmia do início dos anos 40.
Linhas do mando
Não sigo as linhas do mando,
Nem mando as linha a seguir.
Sou ser.
Sou gente.
Presente da mãe-natureza,
Ciente,
Do seu bem-querer.
Bem quero.
Bem amo.
E ando
Sem me prevenir.
Apanho.
Não ganho.
Confesso:
Não sei se sei resistir !
Me armo de flores na mão.
No verso,
Eu sei,
Aqui não há solidão.
Há clima.
Há luta.
Esperança de não ser em vão
O canto,
A vida,
O dia de dor do poeta,
Dia de dor da canção !
Trovas de Luiz Rabelo
traduzir a dor da gente,
então a lágrima acode
E diz tudo quanto sente
Tanta dor o mundo invade
Que está certo quem nos diz
Que a própria felicidade
Tem medo de ser feliz
Tu sangras? Não fiques triste
Em toda estrada há espinho
Mérito é o de quem insiste
E reinicia o caminho
Quando Deus criou o mundo
Das praias fez-se rainha
Meu nome é doce, profundo
Nome de embalo: Redinha
O Mártir da Galiléia
Esta verdade traduz:
Não morre nunca uma idéia
Mesmo pregada na cruz
Shimmy
PARA MÁRIO DE ANDRADE
O SOL LHE BATE DE CHAPA
D’UM BESOURO O BRILHO ESCAPA
BRANCO, NEGRO, OURO E MEL.
ROLA, RECUA E SE ATIRA
VOLTA, SE ENCOLHE E SE ESTIRA
O DORSO DA CASCAVEL.
O CORPO INTEIRO PALPITA
A PELE SE ARRUGA E AGITA,
A LÍNGUA FINA DARDEIA
E TREME E ESTORCE E AVANÇA
E ESTACA, E DEMORA E CANSA
ONDULA, VAGA, VOLTEIA.
SILVA, RONCA, BUFA E SOA
O MARACÁ QUE REBOA
E TUDO DANÇA NO PÓ.
ALONGA A BELEZA TOSCA
DA PELE QUE VAI E ENROSCA
E FICA TREMENDO SÓ...
O DORSO ACURVA, SE ENROLA
COMO O FIO DE UMA MOLA
INCHA, SOPRA, ENGORDA, CRESCE,
SOBE, PARA, VOLTA E CORRE
O BRILHO NO LOMBO ESCORRE
VIBRA, ESTALA, ESPICHA, DESCE...
VAI PARANDO O MOVIMENTO
O MARACÁ CEDE AO VENTO
E FICA SOANDO MAL.
DE PRONTO SACODE O LAÇO
COMO UMA MOLA DE AÇO
SUBINDO NUMA ESPIRAL.
INDA VIBRA, MEXE E BOLE
O CORPO ANEGRADO E MOLE
SUSTÉM O COMPASSO ENFIM.
CEDE A CADÊNCIA DA DANÇA
PARA O CHOCALHO, DESCANSA
E TUDO CESSA POR FIM.
LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
A primeira dama de Natal
"As mulheres de Maria Boa (famoso prostíbulo de Natal) tem uma predileção pelo grego, em detrimento do latim. Usam a palavra "gala", e não esperma. Gala é leite em grego."
Luís da Câmara Cascudo
Natal, década de 40 - A cidade fervilhava de militares americanos e brasileiros. Aviões, hidroaviões, Catalinas e Jeeps patrulhavam a vida dos natalenses.
Instalava-se na cidade a paraibana de Campina Grande, Maria Oliveira Barros (24/06/1920 - 22/07/1997). Começava neste ínterim a história da mais conhecida casa de tolerância do estado (do país ou do mundo?).
Entre as movimentações na Ribeira, nas pedidas de Cuba Libre no saguão do Grande Hotel, nas notícias pelas Bocas de Ferro, na Marmita, em Getúlio e em Roosevelt e na nova geração de meio americanos e meio brasileiros, lá estava Maria Barros enaltecendo-se na Cidade do Natal como a proprietária do melhor (ou maior) cabaré.
Tornou-se conhecida como Maria Boa. Mesmo com pouco estudo ela despertou o gosto por música, cinema e leitura. O seu "estabelecimento" era o refúgio aos homens da cidade, com residência fixa ou, simplesmente, por passagem por Natal.
Jovens, militares e figurões acolhiam-se envoltos as carnes mornas das meninas de Maria Boa. Muitas mães de família tiveram que amargar, em silêncio, a presença de Maria Boa no imaginário de seus maridos em uma época de evidente repressão sexual.
Vários fatos envolveram a personagem. O episódios mais comentado foi a pintura realizada pelos militares em um avião B-25. Um dos mais famosos aviões da 2a Guerra Mundial, os B-25 eram identificadas com cores características de cada Base Aérea. Os anéis de velocidade das máquinas voadoras da Base Aérea de Salvador eram pintados com a cor verde. Os aviões de Recife, com a cor vermelha, e os de Fortaleza, com a cor azul. Para a Base de Natal foi convencionada a cor amarela.
Os responsáveis pela manutenção dos aviões em Natal imaginaram também que deviam ser
pintados no nariz do avião, ao lado esquerdo da fuselagem junto ao número de matricula, desenhos artísticos de mulheres em trajes de praia.
Autorizada pelo Parque de Aeronáutica de São Paulo, a idéia foi colocada em prática. Pouco tempo depois, os B-25 de Natal surgiram na pista com caricaturas femininas e alguns até com nomes de mulheres.
Alguns militares da Base escolheram o B-25 (5079), cujo desenho se aproximava mais da imagem de Maria Barros. Outras aeronaves também receberam nomes como "Amigo da Onça" e "Nega Maluca".
Quem custou a acreditar neste fato foi a própria Maria. Até que alguns tenentes decidiram levá-la até à linha de estacionamento dos B-25 logo após o jantar para não despertar a atenção dos curiosos. Ela constatou o fato. As lágrimas verteram de seus olhos quando viu à sua frente, pintada ao lado do número 5079, a inscrição "Maria Boa".
O mito "Maria Boa" rendeu trabalhos acadêmicos como o da Sra. Maria de Fátima de Souza, intitulado: "A época áurea de Maria Boa (Natal-RN 1999)". O trabalho aborda o
"fenômeno da prostituição infanto/juvenil, suas conseqüências e causas no desenvolvimento físico e psicossocial de crianças e adolescentes(...). Com o aprofundamento dos estudos percebemos o importante papel dos bordéis na prostituição, bem como o fechamento dos mesmos(...). Chegamos então ao cabaré de Maria Boa, já fechado. Tivemos, assim, a oportunidade de conhecer um pouco da saga da Sra. Maria de Oliveira Barros, uma profissional do sexo, com grande importância na história da prostituição de adultos, ou ainda, tradicional; das histórias contadas a seu respeito chamou-nos atenção para sua representação social, seu "mito" e sua ligação com o imaginário masculino. Com isso, passamos a averiguar mais profundamente uma participação na sociedade da época e buscamos reconstruir parte de sua história enquanto meretriz, cafetina, e proprietária da mais famosa casa de prostituição que o RN já conheceu."
Em 26 de março de 2003 o cantor Valdick Soriano, quando entrevistado por Everaldo Lopes, registrou que quando esteve em Natal, pela primeira vez, cantou até para as meninas de "Maria Boa".
Hoje bebe-se Maria Boa em alguns bares de Natal. Uma mistura de creme de cassis, vinho branco ou champanhe embriaga as lembranças da maior cafetina da cidade.
O Professor Assistente do Departamento de Letras Márcio de Lima Dantas publicou e 28 de abril de 2002 o texto "Retratos de silêncio de Maria Boa".
"(...)Para além da atitude ética de proteger sua família, o que faz parecer um jogo com a hipocrisia da sociedade, penso que, na atitude de se manter reservada, se inscreve um outro aspecto digno de ser ressaltado. Falo do mito que entorna a personagem Maria Boa, de certa maneira, criado e ritualizado por ela mesma, dimensão de fantasia para além do empírico vivenciado. (...).
(...) Astuciosamente se fez conhecer por "Maria", o antropônimo mais comum no universo feminino, genérico e pouco dado a divagações semióticas. Ironicamente é o nome da mãe de Jesus... Quem não tinha conhecimento no Estado de uma proprietária de um requintado lupanar, e que se chamava Maria, a Boa. O mito, da constituição do éter, era aspirado por todos, preenchendo necessidades, ocupando lugares no espírito, imprimindo fantasias nos adolescentes, despertando em jovens mulheres às aventuras da carne, engendrando adultérios imaginários. Integrava, assim, o patrimônio individual e coletivo. (...)"
Eliade Pimentel, no artigo "E o carnaval ficou na memória" destaca a presença de Maria Barros nos carnavais de Natal:
Lá pela década de 50, os desfiles passaram a acontecer na avenida Deodoro da Fonseca. Maria Boa desfilava com Antônio Farache em carros conversíveis,"
O Jornalista Agnelo Alves quando escreveu o artigo "A Natal que governei e o 3º Milênio" citou o cabaré de Maria Boa como ponto de referencia geográfica para informar sobre as suas obras quando prefeito de Natal.
"(...)Desobstruir para crescer. Alargar para trafegar. Conversei com os arquitetos João Maurício Miranda e Daniel Holanda. Como fazer? Lancei o desafio. Sem a contra-partida de nenhum pagamento, os dois me apresentaram o esboço da solução, surgindo daí o primeiro Plano Viário de Natal com a primeira estação metropolitana da cidade. Asfaltar a Hermes da Fonseca até o contorno com a Praça Aristófanes Fernandes, seguindo daí em linha reta até a Duque de Caxias. Ponto um. Asfaltar a Duque de Caxias, subindo pela Junqueira Aires, via Praça das Mães, pegando a lateral por trás do Tribunal de Justiça (hoje OAB) até a Praça André de Albuquerque, prosseguindo pela Praça das Laranjeiras, Padre Pinto, sobrando em Maria Boa para sair na lateral do cemitério, já no Alecrim, ou numa primeira etapa prosseguir pela Padre Pinto até o Baldo e aí tomar o rumo do Alecrim.(...)"
Maria Barros é história. Mesmo sendo paraibana é a Primeira Dama (ou anti-Dama) de Natal. Impera nas lembranças dos seus contemporâneos e se faz presentes nos prostíbulos que ainda resistem nas periferias da cidade ou travestidos de casas de "drinks" nos bairros mais nobres.
Maria Barros é citada no filme For All - O Trampolim da Vitória (vencedor do Festival de Gramado em 1997, com os prêmios de melhor filme brasileiro, melhor filme do júri popular, melhor roteiro, melhor direção de arte e melhor trilha sonora de filme brasileiro), de Luiz Carlos Lacerda e Buza Ferraz. O filme retrata a cidade do Natal em 1943 quando a base americana de Parnamirim Field, a maior fora dos Estados Unidos, recebe 15 mil soldados, que vão se juntar aos 40 mil habitantes da cidade.
Para a população local a guerra possuiu vários significados. A chegada dos militares americanos alimentou fantasias de progresso material, romance e, também o fascínio pelo cinema de Hollywood. Em meio aos constantes blecautes do treinamento antibombardeio, dos famosos bailes da base aos domingos, dos cigarros americanos, da Coca-Cola e do vestuário estavam os sonhos natalenses. Sem questionamentos, "Maria Boa" foi uma das principais atrizes no elenco desse belicoso teatro. A Primeira Dama Maria Boa...
José Correia Torres Neto
Na feira do Alecrim
Na feira do Alecrim
O marchante grita: “Chã de dentro”
E eu lá por fora...
Na barraca de seu Malaquias
Tinha ratoeira, candeeiro, alpercata, fumo de rolo,
Querosene, peixeira miúda, retalho de fazenda...
Na calçada a lata de mel de engenho, a rapadura,
O alfenim, a cocada, o açúcar mascavo...
Na Avenida Dois
O siri, o caranguejo, a galinha caipira,
O porco, o carneiro capado...
Para a feira do Alecrim eu levava cinco cruzeiros
E comprava Raiva, Sequilhos, confeito barato,
E ainda sobrava troco para uma lata de umbu.
A cesta de palha da minha mãe vinha ‘cheinha’ de tudo:
Carne de sol, farinha, goma, alface, mocotó de boi, tripa...
Na feira todos se encontravam.
Era o professor de matemática, o carteiro,
O vigia do colégio, o colega de sala
E até a Madre Superiora...
Todos com sandália de dedo,
Todos eram iguais na feira do Alecrim...
José Correia Torres Neto
sábado, 26 de setembro de 2009
Os Cantões
Um dos costumes mais interessantes de uma parte da população natalense das últimas décadas do século passado e primeiros anos do presente foi a instituição do Cantão, local onde se reuniam grupos de intelectuais, funcionários públicos graduados, políticos e comerciantes.
Diariamente, um grupo de amigos, sem número definido, se encontravam na calçada da residência de um deles – sempre o mesmo – e colocadas as cadeiras estava reunido o conclave.
Havia vários Cantões na cidade, cada um com seu feitio próprio, localizados nos dois bairro existentes: Ribeira e Cidade Alta.
Na Cidade Alta, eram bastante concorridos os seguintes Cantões: da Gameleira, o mais antigo e temido pela crítica sempre ferina, situado à Praça da Alegria, atual praça Padre João Maria. O núcleo do Cantão, a casa de Joaquim Guilherme de Souza Caldas, inspetor do Tesouro, abrigava o “Grupo da Gameleira”, facção do Partido Conservador, liderado pelo padre João Manoel de Carvalho, três vezes deputado provincial e duas vezes deputado geral (1873-76 e 1886-89). Faziam parte, ainda, do “Grupo da Gameleira”, alusão à maior e mais frondosa árvore da praça, José Bonifácio da Câmara, Francisco C. Seabra de Melo e Manoel Porfírio de Oliveira Santos, figuras exponenciais da política potiguar.
Na antiga Rua Nova, atual avenida Rio Branco, em residência de Urbano Hermílio, funcionário da Fazenda, existia outro Cantão com a característica de excluir a política de sua discussão, cuidando apenas de arte e literatura. Os freqüentadores habituais eram: Alberto Maranhão, Henrique Castriciano, Manoel Dantas, os irmãos Celestino e Segundo Wanderley, Pinto de Abreu e Pedro Soares.
Outro Cantão bastante freqüentado era o da residência do bacharel e magistrado federal, Celestino Wanderley, na avenida Junqueira Ayres, de predominância familiar, pois era freqüentado por senhoras e senhoritas. Despontavam neste grupo, João Nepomuceno Seabra de Melo, Juvenal Lamartine e Manoel Coelho, entre outros.
Na mesma avenida onde morava Celestino Wanderley, existia outro Cantão, o da residência do coronel Gaspar Monteiro, irmão do jornalista e político Tobias Monteiro, onde se reunia um grupo pouco numeroso, porém selecionado, destacando-se Westremundo Coelho, Umbelino Melo e Nascimento Castro. Discutia-se predominantemente a luta política.
Não muito longe dali, na Rua da Palha, atual Vigário Bartolomeu, existia o Cantão da Potiguarânia, nome de um bilhar de Ezequiel Wanderley. Era o Cantão mais descontraído da cidade, freqüentado na sua maioria por jovens, que trocavam idéias sobre arte, literatura, jornalismo, tudo, enfim, que no momento atraísse a atenção da cidade. Freqüentavam religiosamente este Cantão: Uldarico Cavalcante, Antônio Marinho, Gothardo Neto, Sebastião Fernandes, Ferreira Itajubá, Pedro Melo, Aurélio Pinheiro, Cícero Moura, Celestino e Segundo Wanderley, José Pinto, Francisco Palma, entre outros.
Na Ribeira, existiam dois Cantões: o da farmácia do comendador José Gervásio de Amorim Garcia, localizada na antiga Rua do Commercio, atual rua Chile, e outro nas proximidades do Hotel Internacional, o mais importante da cidade, situado à avenida Tavares de Lyra, esquina com a Rua do Commercio. Ambos eram eminentemente políticos e tinham entre os seus freqüentadores as figuras de Augusto Leopoldo, Antônio de Amorim Garcia, Francisco Amintas da Costa Barros, membros do “Grupo da Botica”, alusão à farmácia de Zé Gervásio, que sediava as reuniões da facção do Partido Conservador, liderada pelo Dr. Tarquínio Bráulio de Souza Amaranto, três vezes deputado geral, que fazia oposição ao “Grupo da Gameleira” desde a morte do chefe do Partido Conservador, Cel. Bonifácio Francisco Pinheiro da Câmara, ocorrida no ano de 1884, quando o Partido Conservador no Rio Grande do Norte ficou dividido em duas facções: a do “Grupo das Gameleiras” e a do “Grupo da Botica”.
In O Potiguar, ano I, Nº 5, abril/maio de 1998.
Cantões, Cocadas Grande Ponto Djalma Maranhão
Não poderíamos chegar ao coração da cidade sem antes traçarmos um perfil da História da cidade do Natal. Também não poderíamos situar o Grande Ponto sem falarmos da Ribeira e da própria Cidade Alta, onde ele está inserido.
Esses Cantões, Cocadas, Grande Ponto Djalma Maranhão não tem a pretensão de revelar todas as estórias, acontecências, tipos, fatos, mistérios do Grande Ponto. Seria um trabalho impossível.
Abrimos esta Antologia com um texto do nosso pai, José Alexandre Odilon Garcia, homenageado com seu nome dado ao Largo Boêmio da Ribeira, na rua Chile. De Zé Alexandre, como era conhecido, trazemos um texto inédito, que, durante anos, ele rebuscou, quando, nos anos sem turismo, buscava criar um Guia da Cidade do Natal.
O texto contextualiza-se para situar o leitor, de forma rápida, quanto à História da cidade. E readaptamos um outro texto seu, que abriu as suas “Acontecências e Tipos da Confeitaria Delícia”, de 1985, onde ele situa a Ribeira e a Cidade Alta nos idos de 40.
Trazidos esses textos de José Alexandre, trazemos, como forma de homenagem, uma abertura para este livro: o poema História da Cidade do Natal, de Deífilo Gurgel. Ele situa poeticamente, de uma maneira ingênua e gostosa, a Natal de todos os tempos.
Contar com a colaboração de todas essas almas que desfilam por essas páginas daqui em diante, nos dá uma dimensão de universo do que foi o Cantão do Grande Ponto, e foi a isso que quisemos chegar.
Cascudo conta-nos a exata História: um ponto comercial, o Café Grande Ponto, do português Custódio de Almeida, situado hoje onde está erguido o edifício Amaro Mesquita, no cruzamento da avenida Rio Branco com a rua João Pessoa. É a origem do nome do logradouro.
Conta-nos Cascudo, que Amaro Mesquita era um caixeirinho que ali mesmo varria calçadas e dizia de si para si: "Nesse lugar vai ser o meu sobrado" ou "eu farei aqui o meu sobrado". De balconista, Amaro tornou-se próspero comerciante e construiu o seu sobrado no lugar onde era o Café: é o Edifício Amaro Mesquita.
Manoel Procópio de Moura Jr. nos informa que, em 1845, o presidente da Província, Casimiro de Morais Sarmento, determinou a ampliação da atual rua João Pessoa, derrubando a mata existente até a rua Princesa Isabel.
E nos diz ainda Procópio: “após esta derrubada, a atual Princesa Isabel passou a chamar-se Rua dos Tocos, enquanto a parte ampliada da atual rua João Pessoa, passava a se chamar Rua Sarmento.”
Diz ele que, “anos depois, quando a Rua Sarmento já atingia a atual Av. Deodoro, recebeu, em 13 de fevereiro de 1888, a denominação Rua Visconde de Inhomerim (Francisco Sales Torres Homem).”
E arremata: “Este nome se conservou até o início do Século XX, quando passou a chamar-se Rua Coronel Pedro Soares, para, finalmente, já na década de 1930, chamar-se Rua João Pessoa.”
Odilon de Amorim Garcia nos revela que, ali, “durante a II Grande Guerra, começou a funcionar o “Serviço de Alto Falante”, de Luiz Romão, cujas caixas de som eram fixadas em um poste, exatamente na esquina da João Pessoa com a avenida Rio Branco, defronte ao “Café Grande Ponto”.
Nos diz, que “todos os dias, às 19 horas, o Serviço transmitia músicas, e, às 21 horas, retransmitia o noticiário da BBC de Londres.” E que “Os freqüentadores do Grande Ponto se deslocavam para aquela esquina para ouvir as últimas notícias sobre a guerra.”
Odilon nos conta uma estória do popular Zé Herôncio, no carnaval, “vestido de mulher, tendo na mão um pinico cheio de salsichas, ostensivamente, com caretas como de nojo, fazia que comia o verdadeiro conteúdo que geralmente existe num pinico.”
Marcos Maranhão, filho de Djalma Maranhão, poeta-prefeito que mereceu, a partir de projeto de lei do vereador Antônio Júnior da Silva, do PT, a homenagem de ter o seu nome ligado ao Grande Ponto, traça um perfil político, humano e de realizações do pai.
E vem um desfile de grandes estrelas com seus textos que, somados, dão um panorama do que foi e é o Grande Ponto para a cidade do Natal. Senão, vejamos o que eles dizem do Grande Ponto:
Para Ubirajara Macedo, “o Grande Ponto era uma festa.”
Odilon, dos vivos, talvez o mais velho, ensina que “nunca se deve mexer em coisa antiga”, e pondera, “mas, às vezes, é bom trazer de volta um passado que alegrou a nossa mocidade.”
Marcos Maranhão lembra que “as cidades antigas tinham seu lugar sagrado no centro, na Ágora em Esparta, na Acrópole em Atenas, no Capitólio em Roma.” Que, “Ali, os cidadãos se reuniam e faziam discussões sobre os assuntos mais importantes, divertidos e esportivos da cidade.”
“Um dos costumes mais interessantes de uma parte da população natalense das últimas décadas do século passado e primeiros anos do presente foi a instituição do Cantão, local onde se reuniam grupos de intelectuais, funcionários públicos graduados, políticos e comerciantes.” Cantões. “ Na Cidade Alta, eram bastante concorridos os seguintes Cantões: da Gameleira, o mais antigo e temido pela crítica sempre ferina, situado à Praça da Alegria, atual praça Padre João Maria”, conta-nos João Gothardo Dantas Emerenciano.
“Em sua residência, o Vigário Bartolomeu costumava receber os amigos, à tardinha, na calçada, à sombra da própria casa, segundo hábito daqueles tempos em Natal, cidade provinciana. Ali, eram dispostas cadeiras constituindo as tradicionais ‘rodas’ para as ‘prosas’, hoje denominadas ‘bate-papos’, as quais se prolongavam até certas horas da noite. Essas ‘prosas’ eram comuns nas calçadas das principais residências da cidade, ou à sombra de frondosas árvores existentes nas praças, destacando-se a do “Cantão da Matriz”, sob majestosa gameleira da Praça da Alegria,” rememora Antônio Fagundes.
Lauro Pinto lembra que, “antigamente, essas reuniões em Natal, como nos diz o historiador General Pessoa de Melo em seu livro ‘Natal de Ontem’, tinha o nome de - Cantões - cerca de cem anos atrás.”
Para Joanilo de Paula Rêgo, o Grande Ponto “é o território encantado onde vive a alma errante, boêmia e lírica, curiosa e loquaz, da gente natalense.” Joanilo é do Cantão dos Pastoradores da Estrela da Manhã, ainda na ativa, depois das 23:00 horas.
“O Grande Ponto era tão importante que tinha lugar de destaque no mapa do Brasil. É. (...) Grande Ponto dos “coronéis” da política, que enfeitavam as noites daquele verdadeiro campus universitário com seus ternos de linho branco irlandês 120”, nos garante José Maria Guilherme.
Em versos, Nei Leandro sapeca que
“o cafezinho ao lado
às vezes queimava a língua
de quem falava demais.”
Aos oito anos, Clara de Góes foi a escolhida para “Ver o padrinho, o prefeito, levar-lhe um par de meias. Levar os recados, as recomendações de todos, se lembrar, não esquecer, trazer de volta, aos seus, um gesto dele, habitual... Eram os idos de 64 e Djalma estava na Embaixada do Uruguai, no Rio. Ou partia ou, na rua, seria preso, já amargando a saudade e a tristeza que viriam, longe do Grande Ponto.
Em Itamaracá, e pelo resto do Brasil, depois vários outros países da América Latina, presos políticos amargavam o chicote do pau-de-arara, o cacete, os choques elétricos, as unhas arrancadas, o terror, o medo, o poder dos quartéis sob ordens da inteligência norte-americana, a intervir no mundo, ferindo a autodeterminação de povos, com medo do comunismo.
Luciano de Almeida faz fragmentos do Grande Ponto, e diz que “Com o Ato 5, soa o dobre de finados para toda a atividade política no Grande Ponto. Ponto final.” Helmut Cândido tem parecer semelhante: “O Grande Ponto morreu. Não vive mais. Perdeu-se no tempo.”
Graco Medeiros, “filho de velho decano dos comerciários do centro da cidade, chamado Luiz Cleodon de Medeiros”, jura que “(...) ‘fechou o tempo’ na Cidade Alta para ver a movimentação de soldados do exército, com roupas de campanha e um baita caminhão verde-oliva toldado, ocupar o passeio público para retirar a parafernália de guerra das vitrinas de “O Novo Continente”. Ele lembra que era, justamente, a noite de 24 de agosto de 1961, e que, no dia seguinte, “Dia do Soldado”, Jânio da Silva Quadros comunicaria sua renúncia a um país perplexo.”
Em cima do Novo Continente, o Natal Clube, Cantão de festas no passado e carteado no fim de festa.
Grande Ponto de tantas boas e más línguas, que revoltam o poeta ítalo-natalense Franco Jasielo, há décadas aqui arraigado, que torna-se catastrófico e ferino: “os bares e os poetas foram demolidos. A fofoca legítima fugiu para os jornais.”
J. Charlier Fernandes também faz poesia:
“Grande Ponto
Grande porto
orbe liberto do tempo:
sendo um pouco o teu retrato
(com a minha alma fechada)
eco de tuas vivências
(com o meu sossego calado)
por que assim avassalas
no teu chão de confidências?”
E poesia também faz Celso da Silveira:
“Centro referencial
de política e cultura,
de oposição e governo;
a palavra ali falada
no palanque dos comícios
ganharam tal ressonância
que nos seus cantos ecoam.”
“Ali, a democracia participativa criava raízes, pois a discussão era permanente sobre as grandes questões nacionais e da cidade”, quem nos diz, de pés no chão, é Moacyr de Góes, que nos lembra que essa prática só muito depois começou a ser usada no Brasil, pelo PT. Fala-nos do Fórum de Debates. Era o Cantão da Praça da Imprensa.
Era um ponto xaria, habitado por todos os canguleiros da velha Ribeira, que começava a perder encantos e comércio, prostíbulos, bares e almas que subiam a ladeira para a conversa diária e amena de fim de tarde, com mortais que surgiam do Tirol, Petrópolis, Alecrim, Quintas, de onde mais?
“Nesta ‘Universidade’ popular, reuniam-se intelectuais, esportistas, políticos, jornalistas, estudantes e um sem número de prisiacas. Era uma fonte inesgotável de comentários, boatos e muita conversa fiada que invadiam a nossa pequena Natal”, tese de Manoel Procópio Jr.
Casciano Vidal nos confessa que “assumindo o Grande Ponto e sua genial humanidade”, ele percebeu “coisas que os olhos curiosos do menino chegado de Mossoró e Alexandria nunca tinham visto.”
Falves Silva historia e analisa, e afirma que “era naquele local onde os expoentes daquela geração, a das cocadas, resolviam os problemas do mundo.” Era o Cantão das Cocadas.
Eugênio Neto ainda afirma que “a ‘Calçada do Café São Luiz’ é, hoje, para nós, seus freqüentadores, verdadeiro estado de espírito. Não se entende começar o dia sem uma chegada até lá. Outro cantão, gabado pelo padre José Luiz: “O Grande Ponto existe? Existe o Café São Luiz”!
O Grande Ponto, que, para Leonardo Sodré “já foi moderno, hoje tem história e melhor do que grande diante do crescimento da cidade, virou um ponto que foi grande fisicamente e se tornou maior ainda pela memória que guarda e preserva.”
Talvani Guedes da Fonseca afirma que “havia um pedaço do Grande Ponto que não dormia.” E Protásio Melo, como se a sentir a nossa sede, começou a ver que “não havia mais um lugar para sentar, conversar, beber ou comentar a vida alheia.” Para depois comemorar: “é quando aparecem os irmãos Rossini, Múcio e Aldemar Miranda, inaugurando a Confeitaria Cisne.” Aí surge o Cantão do Canto do Cisne.
Manoel Onofre Jr. registrou ser o Grande Ponto “sala de visitas, centro de convivência, ágora, universidade popular. Tudo isto e algo mais.” Cantão.
Para não fugir ao risco do vou, não vou citar, Inácio Magalhães Sena escorrega: “eu não devia mencionar nomes, por acabar esquecendo algum. Mas como esquecer”...
“O Grande Ponto não somente situa uma espécie de centro geográfico da capital, como assume o centro afetivo de encontro e relacionamento de um permanente potencial de sua população”, defende sociologicamente Raimundo Nunes.
Na visão geográfica de Franklin Serrão, “a história da construção deste nosso espaço geográfico afetivo se confunde com tradição e todos os elementos sociais que produzem modificações através do tempo.” Modificações essas que não querem calar na indagação de Cristina Tinôco: “a quem importam as feridas expostas do velho centro? Quem as cuidará?”
Filho do grande grandepontense Alexis Gurgel, Alexandro chega trazendo-nos poesia em prosa: “o badalar do sino da Igreja do Galo continua preciso e atento às mudanças da Cidade Alta.”
“Lembra-me o Montmartre de Paris, de minha juventude de estudante”, diz padre Agustin, enquanto Raquel Alves de Sousa, saudosa, faz poesia de pranto: “hoje, o Grande Ponto cresceu e o Cinema Rex é só memória.”
Grande Ponto do Cantão da Vesúvio, onde, “No meio da rua, um pierrot de branco parou em frente à porta. Tira do bolso um lança-perfume e ensopa um lenço que leva ao nariz. Logo seus braços pendem e o lenço se desprende. O pierrot hesita, vacila e começa a cair devagar. Flutua, como que paira, leve, descendo aos poucos até o chão.” Era Newton Navarro, em prosa/poesia de Cláudio Pinto Galvão.
Grande Ponto numa Natal que, para Petit da Virgens, era “uma grande Nova Iorque”, cidade que possuía um Grande Ponto que sediava uma Confeitaria Cisne, onde, “Numa dessas belas tardes festivas, reunidos ali em uma cervejada, Cascudo, Saturnino, Severino Nunes e eu, depois de simbolicamente ouvirmos “o canto do galo”, que ainda ressoava nas páginas da história, discutimos informalmente a possibilidade de mandarmos cunhar uma medalha de ouro com o número 13 encimado por um galo e que essa medalha servisse de insígnia aos iniciados” do Clube dos Inocentes, como lembra o professor Melquíades.
Todo esse saber, essa filosofia e esse testemunho são parte da cultura da cidade do Natal, que tem, no Grande Ponto, o seu coração safenado. Grande Ponto que foi o maior entre todos os cantões da cidade do Natal: a ágora, a Universidade do Grande Ponto, cujo reitor era, sem dúvidas, João Cláudio Machado.
É, ainda através desse Grande Ponto que a cidade respira, aspira, agiganta-se e não se retrai, porque o Grande Ponto é chão de luta e também história de amor a terra.
Tirol, 27 de novembro de 2002.
Eduardo Alexandre de Amorim Garcia
Mais: Grande Ponto
THE END ENFIM
Uma dor lancinante
cortando a carne
reprisando cenas,
definitivamente,
caminhando para o fim,
"the end" enfim.
As mesmas canções
repetidas
milhões de vezes
acalmando lembranças,
acentuando dores.
No ar
o som da voz
na boca
o sabor do beijo
nos olhos
o sorriso derradeiro
na alma
uma grande saudade.
Chagas Lourenço
A Viagem do cigano
Edgar Allan Pôla
Houve época em que a juventude crazy natalense torcia por uma chuvinha no interior.
Na Praia dos Artistas, ninguém entendia a tendência pelas chuvas.
- A galera aqui do surf gosta, dizia o Boy da Praia.
É que, com chuva, explicava, as ondas atlânticas vêm maiores.
- Chuva, pra quê? Eu quero é sol, reclamava a oposição representada pelo paulista Oswaldo, representante de revistas sulistas estabelecido na Ponta do Morcego.
Quando, em março, a chuva bendita, porém pouca, caiu, uma turma dirigiu-se para São José de Mipibu.
Cercas de arame farpado, o visual era uma beleza do lado de dentro!
Gado zebu no pasto verdinho, macho pra lá e pra cá, em tentação, e a turma de olho, pra ter certeza de que o cogumelo que buscava brotava mesmo da bosta do reprodutor.
Tinha um andarilho cigano de nome Kallon, senhor de todas as orlas potis e tabajaras, pai de prolíferas proles em todas as praias por onde andara, que gostava de viagens e que cobrou quota da meninada quando esta chegou com o produto do brejo.
Panela escaldante, os cogumelos quase chiaram quando nela foram jogados.
Primeiro copo para o cigano, Kallon não se fez de rogado: emborcou o conteúdo ainda quente para o estômago, e sentou-se na mesa do bar.
Duas horas depois, Kallon é encontrado prostrado na calçada do imaculado Colégio da Imaculada Conceição, na Cidade Alta.
Levado para as Clínicas, o médico surpreende-se com aquele corpo inerte, maltratado, mas sem sinais de coisa grave.
Balança o paciente pelos ombros, até que ele abre um olho, disposto ao enfrentamento.
- Você está bem? Pergunta-lhe o médico.
- Doutor, a matéria está um bagaço, mas o espírito está que é uma beleza! Se for medicar, medique só a matéria, doutor, porque o espírito está nas alturas...
Entre Nós
Dança/Teatro
Direção: Diana Fontes
Texto: Cláudia Magalhães (Contos)
Dias 17 e 18 de outubro: Casa da Ribeira/Natal - 20h
Aproveito para enviar um dos contos do espetáculo "O Jantar". Para ler mais contos de minha autoria, é só acessar: www.teatroclaudiama
Beijos e boa leitura.
O Jantar
Cláudia Magalhães
Minha pequena lua, ele dirá sussurrando ao meu ouvido, sob o som sensual de Guess who, de B.B. King. Alguém, realmente, te ama... Quem será?, perguntarei e ele me responderá com um sorriso tão doce e tão suave quanto o vinho... Interrompendo e excitando o tempo, tão veloz quando encontra a paz, jantaremos a luz de velas... Com a confiança de um amor invisível aos olhos da morte, faremos amor com o céu ao alcance das mãos e comeremos estrelas...
Pensava em como seria maravilhosa aquela noite, enquanto caminhava ansiosa para casa. Comemoraríamos seis anos de casados. Como eu o amo, pensei apertando a aliança entre os dedos. Senti uma forte pontada no peito ao lembrar das ofensas trocadas na noite anterior. Foram juras de ódio eterno em meio a garrafas vazias, copos quebrados e dor, muita dor... Juro pela minha alma que a partir desta noite a minha boca me será fiel. Essa noite, com um delicioso jantar, arroz com frutos do mar, que ele adora, vou agradecê-lo pela dedicação, amor e carinho de todos os dias... Sempre que brigamos, eu faço um jantar especial e rapidamente fazemos as pazes... Sempre foi assim... Trocaremos inúmeras declarações de amor e caminharemos juntos, sem competição, na mesma velocidade, como quem segue a própria imagem num espelho..., pensava enquanto abria a porta do apartamento. Um vento forte e frio interrompeu os meus sonhos. Um cheiro insuportável, de algo ameaçador, me causou um forte calafrio na espinha. Corri a passos largos em direção ao nosso quarto. Abri o guarda-roupa do lado direito. Vazio. O meu corpo foi tomado por uma paralisia horrível. Imóvel, senti o meu coração agitar-se, violento, imenso em meu peito...
Desde esse dia, existe uma eternidade entre os segundos. O tempo é muito lento ao lado do tormento. Sou mais uma vítima que o monstro do amor devorou. Não encontro saída. O meu sangue virou um mar de lágrimas. A minha alma, flutuando sobre ele, ferida, grita a todo instante: Mate-o! Mate esse maldito amor! Sinto uma vontade selvagem de matá-lo, mas quanto maior é a minha vontade, maior é a saudade que sinto do que se foi e do que não vivi...
O que me resta dizer? O meu amor me fez comer estrelas. Hoje, tenho verrugas no coração.
sexta-feira, 25 de setembro de 2009
CARTA DE UM POETA MATUTO AO PRESIDENTE DO IDEMA...
Seu Presidente do IDEMA,
já iscriví muntos poema,
e sô um eterno aprindiz.
Mais lhe juro, meu irmão;
na sua incolocação,
o sinhô num foi feliz.
No grupo beco da alama,
dixero qui seu programa,
qué butá p’rá tôda gente;
qui nem apito de iscuna,
no nosso Parque Dais Duna,
vai butá som ambiente.
O poeta do Carirí,
tombém, na Aldeia Poti,
viu a mêrma arrumação;
tombém qui evento isolado,
vai tê ambiente fechado,
p'rá sua realização.
Nóis qué vê a natureza,
o isprendô e a beleza,
qui inspira o trovadô;
com tôda sinceridade,
presente p’rá humanidade,
qui Papai do Céu mandô.
No Parque dais Duna, a gente,
num qué seu som ambiente,
lhe juro, meu amiguíin.
Musga boa ô musga chata,
nóis prefere o som da mata,
e o cantá duis passaríin.
Quem quizé musga de gente,
nóis respeita, é indeferente,
inquanto faiz sua trilha;
seja forte ô seja fraco,
leve inbaixo do suvaco,
o seu raidíin de pilha.
Eu, p’ru mim, prifiro uví,
do sonhíin, seu assuvíi,
e o canto da sariema;
o gôigiá dais rolinha,
ali de madrugadinha,
inspirando o meu poema.
O canto da passarada,
lhe juro, meu camarada;
me traiz munta inspiração;
purisso nêsse cenáro,
prifiro uví uis canáro,
o sabiá e o cancão...
Bob Motta
NATAL-RN
23.SET.2009
DIVAGANDO
Tentando
ver uma forma
As Fotografias
- Eles chegaram. É uma bela mulher!
- Como ela é? Não me poupe dos detalhes, por favor! – implora com docilidade.
- Ela usa um vestido azul, justo, que revela um belo corpo e sandálias altas deixando-a na mesma altura que ele, que está de calça jeans e com uma camisa verde de mangas curtas...
- Eu dei essa camisa de presente a ele quando completamos dois anos de casados. É a minha cor preferida... – parou com a voz embargada. Respirou fundo e pediu - Continue.
- Ele a abraça com ternura e ela retribui o carinho cobrindo-o de beijos no rosto, até alcançar-lhe a boca. Quanta paixão eles exalam. Ela, agora, cochicha algo em seu ouvido arrancando-lhe um enorme sorriso. Isso me faz lembrar Carlos, de quando estamos em nossa intimidade e sussurro palavras picantes ao seu ouvido, ele fica louco de desejo...
- Pare! Não quero ouvir mais nada.
- Entendo.
Ela chora baixinho por alguns segundos. Abre a bolsa nervosamente, retira um elástico e prende os cabelos negros, que tanto realçam sua pele clara, num rabo de cavalo. Não resisto e começo a chorar, afinal, conheço bem essa dor. Quando ligo o carro para irmos, ela segura em meu ombro e implora:
- Vamos ficar mais um pouco. Continue, preciso recorrer às suas palavras, ao menos elas serão fiéis aos fatos e darão a medida exata da dor que devo sentir.
Continuo narrando sabendo que a natureza da minha ação não é bondosa. Desejo fugir, mas a minha vontade de ficar pesa e esmaga o meu medo. Uma vontade machucada, e por isso, inteligente, criativa. Agora, não é somente essa vontade que pesa, mas todo o meu corpo. Algumas pessoas dariam o nome de “maldade” a esse peso, mas na verdade é somente um meio de salvação. Olhando para o vazio, continuo inventando uma paixão rica em detalhes. Criando uma situação que não existe, me vingo, destruo o amor cego de Clarice.
Uma hora depois, paro o carro em frente à sua casa. Por um instante, tenho a vontade de lhe contar uma história bonita, de voltar atrás.
- Chegamos, amiga – digo com ternura.
- Não queria me separar de você. Não queria ficar só – fala com voz trêmula.
- Gostaria de ficar e te fazer companhia, mas infelizmente preciso ir. Carlos deve estar me esperando para o jantar. O que você pretende fazer?
- Ainda não sei. De qualquer forma, obrigada por tudo – fala entregando-se a um choro profundo.
- É para isso que servem as amigas, querida – Nos abraçamos por um bom tempo. Ela estava nitidamente abalada. Sabia que rumo sua mente tomaria de agora em diante. Se antes era capaz de acreditar no sofrimento das flores, agora pregaria a inexistência de Deus. Parti me sentindo suja, vil, pérfida. Mas a certeza que tive, minutos depois, de que o amor é realmente cego, esmagou a minha violência, a minha injustiça.
Chego em casa antes das seis da tarde. Carlos ainda não chegou do trabalho. Vou direto ao guarda-roupa e retiro, debaixo de uma pilha de casacos, duas fotografias. Na primeira, Clarice e Carlos sentados na areia de uma praia que costumamos freqüentar. Ele está lindo, com um sorrido doce, encantador. Na outra, uma foto nossa, também sentados na mesma praia, onde ele sorri com amargura. Amargura, talvez, imperceptível para alguns, mas não para mim. Através dessas duas fotografias descobri o seu segredo. O seu olhar, a sua postura, o seu sorriso na primeira, revelam o real motivo de continuarmos freqüentando, sempre, a mesma praia, da sua paixão por comida italiana e japonesa e da cor verde nas paredes do nosso quarto. Choro, agora, diante da nossa fotografia. Pintei meus cabelos de negro e há muito não tomo sol. Talvez eu fosse mais feliz se fosse sozinha, não precisaria dar beleza ao que deveria desprezar. Escuto o barulho da porta se abrindo. Segundos depois, Carlos entra no quarto, me beija apaixonadamente e diz que sou a mulher da sua vida. Fala tão docemente que chego a ter total certeza do seu amor. Lembro de Clarice, e nesse momento ela não é mais inatingível, não é maior ou melhor que eu. Eu a atingi no peito e fui embora, deixando-a em sua casa e no meu passado, até chegar o momento de, novamente, encarar as fotografias.
Beco da Lama
Beco da Lama
Velho “Beco da Lama”, teus poetas,
Embriagam-se no álcool da ilusão;
Nas vielas do grande coração,
Os boêmios são almas inquietas.
Os teus “loucos” se vestem de profetas
E discursam falando para o mundo;
Vez enquanto aparece um moribundo
Tropeçando nos sonhos de outrora
E perdido no ocaso, busca a aurora,
Entre as mesas, pessoas e cadeiras,
Escutando pilhérias, brincadeiras,
De alguém lhe dizendo vá embora.
Muitas “damas” da noite são constantes,
Nos botecos de luz incandescente;
Velhos portos que atraca muita gente
Que nos copos procuram seus amantes.
Nas calçadas discursos confrontantes
De boêmios, poetas e escritores,
Cada qual defendendo com rigores
Posições, pensamentos e “verdades”
Uns humildes, já outros, vaidades,
Defendendo com afinco os seus valores
Um artista que chega embriagado
Pelo álcool, oferta a sua arte,
É uma cena do “Beco” que faz parte
Pelo um mundo que é sempre ofertado.
Uma “dama”, de jeito delicado,
Tendo o nome da flor do mundo antigo,
Cada mesa “ela” encontra um abrigo
Distribuiu entre todos os seus beijos:
São as cenas dos líricos gracejos
Encenadas no “Beco”, sem perigo.
Velho “Beco” que abriga os solitários
A penumbra se mostra companheira,
A cachaça é amiga alvissareira
Que oferta alguns mundos ideários.
Teus boêmios são sempre solidários
Companheiros notívagos dos sonhos;
Tu és um mundo de alegres e tristonhos
Como as cenas de um filme lenitivo;
Tem boêmio que por ti é cativo
Só te vê, com os olhos, bem risonhos.
Velho “Beco” dos corações partidos;
Passarela de amores conquistados;
Lar de sonhos vivendo nos sobrados
E de corpos que são sempre aquecidos.
Tu ofertas mil mundos coloridos
E as trevas no mar da existência;
Tu és pra muitos, luz da consciência,
A vanguarda do povo de Natal...
Um lugar onde a vida é natural
Expressada na luz da irreverência.
Gilmar Leite
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
Mar de Cecília, espelho sonoro
Viúva aos 34 anos, com três filhas para criar, a poeta maior do Brasil estava no mundo em um permanente e lúcido exercício de fuga, guardando o poder de sua poesia, sem se furtar a nada.
Foi na poesia, espelho da vida inteira, que Cecília Meireles deixou perdida a sua face. Como achá-la na leitura, se na sua criação é posta como enigma, pergunta, busca? Talvez de ouvido possamos resgatá-la, já que antes de tudo ela é sinfonia, cantata, quarteto de cordas, coral. Mas é impossível aprisioná-la nos olhos sem treino, identificá-la com o faro cego, enxergá-la com o tato morto. Mesmo que estivéssemos a pleno com os cinco sentidos, seria inútil tocá-la, já que aprendeu cedo a inventar ou descobrir mundos por meio da solidão e da proximidade com a morte. “Que mal faz esta cor fingida do meu cabelo, e do meu rosto, se tudo é tinta: o mundo, a vida, o contentamento, o desgosto?” (Mulher ao espelho)
Lá ela se recolheu, transparente como uma criatura das profundezas do mar, dessas que não se revelam e jamais vêm à tona, já que encerram em seus movimentos a comunhão de tudo o que vemos e que para ela são apenas ruínas. Sua missão é outra, não a de nos encantar ou exercer seu brilho. Se a deixássemos lá, onde se oculta de modo permanente, apesar de sua notoriedade, continuaria a mesma, a duelar com correntes marítimas vindas do magma e a buscar repouso em flores abandonadas. Ela quer nos dizer algo sobre o que somos, abismos. Poderemos, então, ser salvos de nós mesmos, passageiros potenciais de uma viagem à eternidade. “Longe, longe... Deus te guarde sobre o seu lado direito, como eu te guardava do outro, noite e dia, Amor-Perfeito” (Improviso do amor perfeito)
Serena e sonora, Cecília procura esse rosto que contraria todas as convenções, as personas que assumiu, formatado palavra por palavra, cevado na solidão de quem perdeu o pai antes de nascer, a mãe aos três anos, foi criada pela avó portuguesa e perdeu o marido suicida, que a deixou com três filhas. Cecília manteve-se no mundo irreal da vida prosaica, onde casou de novo, foi professora, pedagoga influente, autora de livros infantis e fundadora da primeira biblioteca especializada para crianças no Brasil. Mas seu território é a poesia, mar absoluto, espelho sonoro onde procuramos em vão sua identidade, guardada não num cofre, mas nesse movimento perene das águas, embalado pela mais alta música e inspirado nas raízes profundas da terra brasilis, a qual dedica todos os seus versos. “Em praias de indiferença navega o meu coração. Venho desde a adolescência na mesma navegação” (Constância do deserto).
Tudo na poeta maior é aparente. Sua entrega é, no fundo, condenação, sua alegria é projeção de uma tristeza infinita, seus laços são frágeis, feitos de vestidos, lágrimas, estrelas, ondas, ventos e verdades que ninguém aceita. Pelo menos não nesta vida, onde esquecemos de nos debruçar sobre as coisas, como faziam os antigos diante das amuradas, janelas, penhascos, gáveas. Somos bons em nos defender de acusações sobre comportamentos e hábitos, mas deixamos ao largo, passando indiferente, a necessidade de semear o coração com algo que não seja ruído inútil ou deserto. “Aqui está meu rosto verdadeiro, defronte do crepúsculo que não alcançaste. Abre o túmulo, e olha-me: dize-me qual de nós morreu mais?” (Canto 7 de Elegia).
Seu estar no mundo é um exercício permanente de fuga, promovido pela lucidez. A obra, que tem em Mar Absoluto e Retrato Natural, lançados em 1945 e 1949, respectivamente, uma síntese suprema, é teia tecida de enredar, seduzir e nos puxar para o fundo, lá onde mora a chama capaz de incendiar o espírito desabitado pela incúria do desconhecimento e da deslembrança. Os dois livros não cobrem a grande diversidade das manifestações do gênio da poeta nascida em 1901 e que se foi em 1964. Mas indica uma luz não para compreendê-la, mas para respeitá-la como fazemos diante das grandes tormentas, as que oferecem, antes da inundação, a face grave do calor e a leve agitação das folhas ainda desavisadas. “Passeio no gume de estradas tão graves que afligem o próprio inimigo. A mim, que me importam espécies de instantes, se existo infinita?” (Inscrição).
Podemos citá-la sem cessar, por décadas, e jamais chegaremos a um porto seguro, pois a cada abordagem nosso navio sente-se impulsionado para longe: “Rastro de flor e estrela, nuvem e mar. Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido: a sombra é que vai devagar”. Ler Cecília Meireles é evitar equívocos como o que vemos atualmente, em que se aposta na brutalidade das mensagens, a aridez das palavras, na pseudo-ousadia dos temas. Não existe nada mais radical sobre as mulheres do que seu grande poema Balada das dez bailarinas do cassino: “Andam as dez bailarinas sem voz, em redor das mesas. Há mãos sobre facas, dentes sobre flores e os charutos toldam as luzes acesas. Entre a música e dança escorre uma sedosa escada de vileza(...) Vão perpassando como dez múmias, as bailarinas fatigadas. Ramo de nardos inclinando flores azuis, brancas, verdes, douradas. Dez mães chorariam, se vissem as bailarinas de mãos dadas”.
Não é necessário uma só palavra pretensamente violenta. A violência vem da armação da poesia, do que se diz por meio de deslizamentos e sussurros, numa delicadeza que perdemos miseravelmente. Temos muitas justificativas para sermos brutos. Mas Cecília viveu duas grandes guerras e fala com serenidade tocante sobre a mortandade, construindo baladas para soldados mortos, para viúvas e mães que aguardam em súbito desespero. Ela viveu num mundo mais transtornado e confuso do que o nosso. Mas soube guardar o poder de sua poesia, sem se furtar a nada. Ela já tinha provado o sal das suas grandes perdas familiares, em que a morte da avó que a criou foi sua grande dor.
É quando ela chora sobre a pessoa querida que jaz à sua frente: “Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos. Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído. No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva, modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos. Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho; a mesma claridade da lua”.
Revisitar Cecília, navegá-la, relê-la, rememorar, comemorar novamente seu nascimento e sua obra, eis um evento fundamental para quem quer a alma ancorada em algo que nos sustenta e transcende. Temos fome de transcendência, nós, os deserdados desta terra. Precisamos do que possuímos de melhor, porque o tempo jamais decide ser mais ameno e existem poucas chances de recuperar o que perdemos. A trágica aventura da nação fez com que voltássemos as costas para o que pode nos salvar da tragédia.
Com Cecília talvez não encontremos seu rosto, submerso em tanta grandeza e talento. Mas podemos olhar pelo seu espelho, o poema sem mácula, e vê-la a sorrir seu desafio feito pólen, sua máscara múltipla, seus pertences girando na tarde que cai na montanha, onde as estrelas formam a margem prateada de uma revelação: “E este mar visível levanta para mim uma face espantosa. E retrai-se, ao dizer-me o que preciso. E é logo uma pequena concha fervilhante, nódoa líquida e instável, célula azul sumindo-se no reino de um outro mar: ah! Do Mar Absoluto.”
(Nei Duclós - jornalista e poeta)