Manoel Onofre Júnior
e não achando naqueles corpos parte que de novo pudessem ator¬mentar, os foram cortando e dividindo por todas as juntas, até que neste martírio deram as almas ao seu Criador ... Horríveis à sua vista deixou a crueldade aqueles corpos, tanto que nem ainda tinham forma de troncos: a muitos abriram, para Ihes tirarem as entranhas, depois de lhes cortarem as cabeças, as pernas e os braços; às cabeças tiraram as partes que lhes dão a forma, como olhos, língua, nariz e orelhas; aos braços tiravam as mãos: às mãos, os dedos" ("Castrioto Lusitano").
No tempo da dominação holandesa vivia na cidade do Natal um judeu-alemão de nome Jacob Rabi. Morando nas proximidades do castelo de Keulen (Fortaleza dos Reis Magos), conseguira a estima dos Tapuias. Sobre estes mantinha grande domínio. Ele era casado com uma índia, e daí talvez a razão maior de seu prestígio. Rico, Jacob Rabi - de uma riqueza adquirida à custa de morticínios e rapinagens, como diz Rocha Pombo. Inteligente: "Suas notas re¬gistrando a vida íntima dos Janduís são depoimento precioso para a etnografia dessa tribo e o grande Marcgrave aproveitou-as num trabalho. Sabia desculpar-¬se e defender-se com eloquência, culpando sempre os seus bravios pupilos ca¬riris" (Câmara Cascudo - "História do Rio Grande do Norte" - 1955, pag. 85) (1). É o mais execrável mau-caráter da história norte-rio-grandense. Homem desta espécie não poderia ter outro fim: foi assassinado.
MASSACRE DE CUNHAÚ
Cunhaú, engenho de açúcar afamado, era um dos principais pontos da capitania. Os outros: Natal, a capital, e Ferreiro Torto, engenho pras bandas da atual Macalba. No mais só o desertão sem fim.
Depois da saída de Maurício de Nassau recomeçou a luta pela expul-são dos holandeses. Não só no Recife, mas em outros lugares, como Natal e Cunhaú, o sentimento de nativismo despertava de novo. Havia, também, moti¬vos de natureza econômica.
Então, a ordem do diretor Paul de Unge (que tinha o governo de toda a província da Paraíba) era prender ou matar todos quantos se manifestassem favoráveis ao retorno à colonização portuguesa.
Em Natal muita gente foi recolhida ao castelo de Keulen, por causa disto. Em Cunhaú sucedeu coisa pior. Houve ali a matança de setenta colonos nas circunstâncias mais horrorosas (2). E é quando surge Jacob Rabi.
NA HORA DA ELEVAÇÃO, A MATANÇA
Desfrutando, como já se viu, de prestígio entre a indiada, Rabi era "o mais temível cabo de guerra dos holandeses", e sabia botar seus selvagens a serviço do invasor.
Certa vez, obedecendo a ordens do Recife, partiu para Cunhaú, com grande número de índios, a fim de cumprir mais uma missão - talvez a mais he¬dionda de todas. Lá chegando, ordenou aos habitantes do lugar que se reunis¬sem na igreja para ouvir determinações, que ele vinha especialmente transmitir. Toda a gente, com exceção de um ou outro, dirigiu-se ao templo, no domingo, 16 de julho de 1645. Antes da anunciada fala, ia haver a missa dominical. Ini¬ciou-se, pois, a celebração. Quando chegava, justo, o momento da elevação da hóstia, todas as portas e janelas foram fechadas, de súbito, e os índios, bran-dindo suas armas, avançavam, aos gritos, sobre os fiéis, Jacob Rabi açulando. Ninguém da igreja pôde se defender; os bordões (únicas armas permitidas pe¬los holandeses) haviam ficado, pacificamente, no pórtico. Cenas dantescas aconteceram. O sangue correu no piso do templo.
Enquanto isto, outros índios iam passando a fio de espada ou a pau aqueles colonos que tinham permanecido nas casas do engenho.
Da matança escaparam apenas três pessoas, que conseguiram fugir por cima dos telhados. Até o celebrante, padre André Soveral, velhinho de no¬venta anos, foi morto, sem contemplação.(3).
OS MÁRTIRES DE URUASSU
A chacina de Cunhaú repercutiu na Paraíba, onde os moradores, re-ceosos da mesma sorte, pegaram em armas. Aqui no Rio Grande do Norte es¬palhou-se o terror. Os que não puderam fugir para Pernambuco e Paraíba, "procuraram refúgio no engenho de João Lostau Navarro (devia ser o Ferreiro Torto) e cerca de setenta se entrincheiraram na distância de seis léguas pelo rio acima, construindo uma espécie de arraial cercado de paliçadas, para onde le¬varam suas famílias, mantimentos e provisões em abundância" (A. Tavares de Lyra - "História do Rio Grande do Norte" - ed. 1982, páq, 78).
Em redor daquele arraial começaram a agir os inimigos: assaltos e emboscadas. É aqui que aparece de novo a figura de Jacob Rabi. Em nome dos holandeses parlamenta com os rebeldes e fala em paz. "Assegura-lhes que tudo aquilo acabaria, e que as barbaridades, que era ele o primeiro a lamentar, eram obra de alguns perversos, que haviam sido já enviados para o Recife, a receber a punição daqueles crimes" (Rocha Pombo - "História do Estado do Rio Grande do Norte" - 1922, pago 129).
Pois, dai a quatro dias ali se apresenta o mesmo Rabi. Mas, desta vez, vinha outro. Acompanhado de uma legião de índios, ataca o arraial. Há re¬sistência. Então Rabi manda buscar no forte Keulen duas peças de artilharia e assesta-as contra o reduto, exigindo rendição, sob pena de não poupar vida; nem mulheres, nem crianças. Sem outra saída os rebeldes rendem-se. E ai Ra¬bi mostra-se magnânimo, prometendo-Ihes garantia no forte, onde já se encon¬travam "alguns dos mais distintos moradores do Natal". Todavia, alguns rebel¬des são presos como reféns.
Algum tempo depois, todos eles - prisioneiros e refugiados - recebem ordens para retomar às suas terras, "onde o governo fazia questão de que vi¬vessem soba garantia das leis e das autoridades holandesas". Numa manhã, foram postos em batéis, que logo deslizaram pelo Potengí acima. Iam felizes, de volta ao lar. De repente, porém, os batéis pararam - era num lugar chamado IJruassu - e foram colocados em terra. Então, duzentos e tantos índios surgiram de trás das moitas, a um sinal dos holandeses de Rabi. Correram, aos gritos, pra cima dos indefesos rebeldes. Começava assim a célebre matança de Uruassu. Vejam como a descreve Fr. Rafael de Jesus:
"Deram os bárbaros holandeses sinal aos selvagens emboscados; saíram estes dos matos com gestos e gritos tão medonhos que causariam es¬panto ao insensível, quanto mais aos humanos destinados a serem presa da¬queles tigres. Mandou então o herege a um predicante de suas diabólicas seitas (pastor protestante, esclareça-se) que entrasse a pregar-lhes prometendo cer¬tezas de glória e esperança de vida aos que se convertessem. Nada conse¬guindo, tomou o predicante por conta o desagravo da seita e a vingança das injúrias, e começou a atormentar com as mãos a todos aqueles fiéis servos de Deus com tal desumanidade que a cada um desejava prolongar a vida para prolongar o martírio".
"AOS BRAÇOS TIRAVAM AS MÃOS"
"De cansado desfaleceu o braço da herética crueza, porém não o va-lor da católica paciência. Retiraram-se os holandeses, e entraram de refresco os Alarves; e não achando naqueles corpos parte que de novo pudessem ator¬mentar, os foram cortando e dividindo por todas as juntas, até que neste martírio deram as almas ao seu Criador ... Horríveis à sua vista deixou a crueldade aqueles corpos, tanto que nem ainda tinham forma de troncos: a muitos abriram, para Ihes tirarem as entranhas, depois de lhes cortarem as cabeças, as pernas e os braços; às cabeças tiraram as partes que lhes dão a forma, como olhos, língua, nariz e orelhas; aos braços tiravam as mãos: às mãos, os dedos" ("Castrioto Lusitano").
CORAÇÃO ARRANCADO
Tavares de Lyra e Rocha Pombo, citando velhas crõnicas, falam no "moço casado, homem bizarro e jovial" que, amarrado a uma árvore viu arran- . cada a língua, sentindo em lugar dela ... E teve o coração extraído pelas costas. Referem-se, ainda, aqueles historiadores aos suplícios infligidos ao Pe. Am¬brósio Francisco Ferro, vigário de Natal - barbaridades tamanhas a ponto de Robert Southey dizer: "Tenho vergonha de escrevê-Ias".
A HORA E VEZ DE RABI
Quem com ferro fere ...
Jacob Rabi fói morto a mando de Joris Garstman, notabilidade holandesa, cujo sogro fora uma das vitimas de Uruassu.
Câmara Cascudo cita depoimento de Oirk Mulder van Mel, em que este descreve o aspecto do cadáver de Rabi: -, deformado por vários golpes de espada no rosto, na cabeça e no braço direito. Uma bala penetrara-lhe do lado esquerdo do corpo, fazendo um ferimento tão profundo que o depoente tinha podido meter nele dois de seus dedos até ao fim. Uma outra bala varara-lhe o lado direito abaixo das costelas falsas".
Requiescat in pace.
NOTAS
1 - Afirma Olavo de Medeiros Filho, em seu livro "índios do Açu e Seridó": "Foi graças a um judeu alemão do condado de Waldeck, Jacó Rabbi, .que viera para o Brasil com o conde João Maurício de Nassau em 1637, que ficou escrita a mais famosa crônica sobre os rndios da nação tarairiú, súditos do rei Jandur.
Tal crônica, presenteada por Rabbi ao Conde Maurfcio de Nassau, serviu de base para as descrições escritas por Barleu, Marcgrave, Nieuhof, Piso, Morisot e outros cronistas holandeses". (Ed. 1984, pago 17).
2 - Segundo Fr. Rafael de Jesus e Dom Domingos Loreto Couto morreram 69 pessoas. Nieuhof, "que extraiu os dados do relatório do Governador Linge, diz que foram 35 as pessoas mortas, e André Vida I, carta de 19 de agosto, dá 40. Uma representação dos moradores de Goiana resumida em Nieu¬hof, fala em 37" (Hélio Galvão - "História da Fortaleza da Barra do Rio Grande" - 1979 - pago 86.)
3 - Fr. Rafael de Jesus ("Castrioto Lusitano") e Dom Domingos Loreto Cauto ("Desagravos do Brasil") descrevem o episódio, provavelmente com algum exagero.
4 - Presença sinistra em Cunhaú e Uruassu, Jacob Rabi também aparece, sempre como vilão, em outros episódios menos significativos, nessa crôni¬ca de horrores que é a história da dominação holandesa no Rio Grande.
quinta-feira, 21 de janeiro de 2010
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